“Antes da Meia-Noite”: Convivência desgastada

Os impasses familiares e amorosos de um casal classe média são os temas deste filme do cineasta estadunidense Richard Linklater

O cenário para o casal Cèline (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke) avaliar seu relacionamento de doze anos não poderia ser mais significativo, neste “Antes da Meia-Noite”, do cineasta estadunidense Richard Linklater. Estão em férias numa Grécia, destituída de qualquer crise político-econômica. É como se o momento histórico não influísse em suas vidas. Nenhum contraponto se faz às agruras do casal quarentão. O descanso os isola com as filhas gêmeas numa pousada, como se tivessem a capacidade de excluir a realidade.

Mas as camadas submersas desta aparente viagem em férias irão emergir ao longo do filme, pois Cèline e Jesse, enquanto passeiam discutem seu relacionamento. É o terceiro filme da trilogia, iniciada em 1995, com “Antes do Amanhecer”, quando se conheceram, seguido por “Antes do Por do Sol” (2004). A francesa Cèline é agora uma executiva, tentando alçar maiores voos, o estadunidense Jesse tornou-se um escritor de sucesso. Trata-se então de casal com vida assentada, sem os problemas das famílias comuns.

Durante suas discussões afloram questões centrais e polêmicas dos casais modernos: dificuldade para compartilhar a educação dos filhos, múltiplas tarefas que recaem sobre a mulher, acomodação do homem em sua carreira, embora assuma algumas tarefas familiares, difícil aceitação de que a mulher ascenda em sua carreira. Qualquer casal se vê nesta discussão interminável, que às vezes descamba para agressões mútuas, beirando a lavagem de roupa suja. E por mais que Linklater as atenue, ferem e deixam ressentimentos inaceitáveis de parte a parte.

Patriarcado persiste no século 21

Há sempre nestas questões resquícios do patriarcado, da luta da mulher para exercer suas potencialidades, enquanto o homem insiste em ter a última palavra. E, além disso, exige que a mulher se sacrifique cuidando das crianças, enquanto ele se dedica à sua carreira. Esta tendência permeia o filme, sem que Linklater a transforme num debate intelectualizado. Cèline e Jesse desnudam-se com uma franqueza que resvala para a crueldade ao testar a fidelidade, a paixão, a honestidade e o compromisso mútuos. Desta forma os questionamentos se avolumam levando a um impasse incontornável entre eles.

Destas tendências, as citadas persistências do patriarcado, brotam questões reprimidas, ciúme e egoísmo, intrínsecas do relacionamento deles. O ódio que Cèline tem da ex-companheira de Jesse, o medo de ele reatar com a ex, o temor de Jesse em deixá-la assumir o alto cargo, pois terá de cuidar das filhas menores, o que, acha, afetará sua produção literária. E a polêmica avoluma-se ainda mais diante da insistência dele em querer retornar aos EUA, para ficar perto do filho adolescente.

São dificuldades comuns a qualquer casal em novo casamento, ou seja, dividir-se entre vários universos familiares e manter a sanidade. Linklater deixa o espectador oscilar entre Cèline e Jesse, sem pender para um e outro. Expõe estes impasses em longos planos sequência, em extensos e instigantes diálogos, isolando cenários, centrando-se na discussão entre Cèline e Jesse. Eles se testam em catarses, em agressões, nas quais qualquer detalhe provoca contra-ataques do outro. Em dado momento já nem sabem se ferem o outro ou não.

Casal se desnuda em contra-ataques

O agradável deste mergulho na relação do casal moderno é o contraponto feito por Linklater na sequência do almoço na pousada à beira mar. Dela participam casais de várias gerações, a idosa viúva e o idoso escritor. Diferentes formas de vivenciar a relação de gênero surgem. A do jovem casal assemelha-se à da idosa, por refletir a necessidade de a paixão superar as mutuas fragilidades. E a do casal Stefanos e Ariane, quarentão, se iguala à de Cèline e Jesse. O traço comum é a linguagem crua, honesta, sobre sexo e defeitos um do outro, expostos por eles sem receios.

Há humor e cinismo em todos eles, a linguagem ácida reflete a superação das barreiras impostas pela repressão sexual e o conservadorismo burguês, assimilado pela classe média. Na longuíssima sequência do hotel, em que Cèline e Jesse se digladiam, Linklater despe-os de quaisquer resquícios de piedade. Eles lançam um sobre o outro recalques, ressentimentos, suspeitas que mostram a capacidade de o ser humano ferir o outro sem dó. É tão visceral quanto às feridas abertas por uma navalha afiada. Dá para perceber o baque sentido por Celine e o atordoamento de Jesse.

A Grécia torna-se assim apenas um cenário do estar, sem emoldurar ou contribuir para a ação. Salvo em duas sequências: a da visita de Cèline e Jesse a mais antiga igreja grega. Desenvolve-se ali um diálogo significativo da destituição da religião na vida do casal. O que os define é seu modo de vida, não no que acreditam ou não. E principalmente na sequência que define o quanto terão de suportar para manter a relação em equilíbrio. O píer, o mar, a luz, traduz toda a melancolia de uma relação que foi posta a prova. Nem mesmo eles sabem se serão capazes de sobreviver ao que disseram um ao outro.

“Antes da Meia-Noite”. ”Before Midnigth”.
Drama. EUA.
2013. 108 minutos.
Fotografia: Christos Voudouris.
Música: Grahan Reynolds.
Roteiro: Ethan Hawke, Julie Delpy, Richard Linklater.
Direção: Richard Linklater.
Elenco: Ethan Hawke, Julie Delpy.

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