Renoir: Crepúsculo no campo
A arte e o homem Pierre-Auguste Renoir (1841/1919) são desvendados pelo cineasta francês Gilles Bourdos neste “Renoir”. Sua cinebiografia, centrada em seus últimos dias em Côte d´Azur à beira do Mediterrâneo, mescla sua inquietação como artista plástico e suas preocupações com os filhos Pierre e Jean na frente de batalha da 1ª Guerra Mundial.
Publicado 31/07/2013 10:00
Ele surge doente, rabugento, cercado de domésticas e, às vezes, pelo filho adolescente Claude (Thomas Doret), mas ainda criativo, como quando iniciou pintando cerâmicas e leques.
Bourgos dá conta de seu tema ao unir duas artes audiovisuais: cinema e artes plásticas. O espectador as vê ganhando forma nas pinceladas de Renoir (Michel Bouquet) e nos enquadramentos do diretor. Em várias sequências há uma articulação entre ambas como nos enquadramentos da modelo Andrèe (Christa Théret) nua de costas, feitos pelo diretor, e ao surgir nos traços de Renoir, obesa; destituída de glamour. Há, assim, o visto na tela e o recriado pela pintura: a de Renoir foge ao naturalismo, a de Bourgos ao simples registro da posse da modelo.
Noutras sequências, não menos decifratórias, Renoir pinta Andrèe nua entre folhagens. De novo ela está bela, sensual, ele não só a fixa obesa como em posse diferente da que está. Retira dela toda a ambiguidade; é tão só uma mulher vista nua no campo. Ao se vê em ambas as telas, Andrèe esbraveja: “Ele só me mostra gorda” (citação não literal), desconhecendo as intenções dele. O próprio Renoir irrita-se com o filho Jean ao vê-lo preparar o cenário para pintá-la. Como o filho insiste, ele desabafa: “Gosto que as pessoas vejam o que pintei sem precisar de explicação”. (Citação não literal).
O Impressionismo soterra o ilusionismo
Vivendo numa época de grandes mutações urbanas, com o surgimento da energia elétrica, do automóvel, do cinema, a visão do artista muda velozmente. Não é o que se vê no cotidiano, as impressões que se tem da realidade é que se impõem. E o artista irá a elas se adaptar. “O Impressionismo representa o auge e o ponto final da pintura ilusionista, a qual, desde o início da era da perspectiva, na Renascença florentina, dominou a arte européia e os hábitos de percepção”, escreve Karl Ryhrberg, em seu ensaio “Prólogo ao Modernismo” (1).
O Impressionismo acrescenta Ryhrberg “começara já a refletir as excentricidades da percepção humana e a sua relatividade, consoante os momentos do dia e as mudanças de lugar; fornecia os materiais para uma arte anti-ilusionista e o escoramento técnico, formal e experimental para os desenvolvimentos que iriam seguir-se”. Bourgos sintetiza esta visão de Ryhrberg na sequência em que as mulheres atravessam o rio, levando Renoir numa cadeira. É como se ele próprio compusesse a cena: há o rio, as mulheres, ele na cadeira, serpenteando pelas águas. Daí a ideia de recriação.
A pintura que deriva desta sequência estruturada por Bourgos é a tela “As Grandes Banhistas” (1887), não em sua amplitude, só os detalhes de suas obesas das mulheres nuas. São os recortes de Renoir em contraposição aos grandes planos de Bourgos. Este, no entanto, não se prendeu apenas à estética do artista plástico, ampliou seu olhar para o homem-Renoir em seu ocaso, em 1915, com saúde frágil, sem poder andar, tinha crises e a perda da mulher ao relegara á solidão.
Rusgas com Jean Renoir
Bourgos, porém, não se prende às questões puramente estéticas. Elas fluem ao longo do filme sem torná-lo enfadonho ou intelectualizado. Pelo contrário, elas encadeiam as criações de Renoir, sua atribulada relação com Andrèe e o retorno de Jean. Em dada sequência, todas estas questões se fundem. Inexiste separação entre a arte de Renoir e sua vida familiar. Jean (Vincent Rottiers) enquanto se recupera do ferimento na perna frequenta seu ateliê e começa uma relação conflituosa com Andrèe, ambiciosa e disposta atraí-lo para seus projetos. Estes entrechos irão ampliar a percepção do homem-Reinoir.
Seu temor como o de qualquer pai em suas circunstâncias é receber notícia da morte dos filhos Jean e Pierre nos combates. É tocante a cena em que se despede de Jean, que decidiu voltar à guerra depois de recuperado dos ferimentos. Ele abraça-o, indo às lágrimas. O rabugento e irredutível patriarca se desmancha. E termina por aceitar a decisão do filho em retornar para os combates aéreos. O homem em seu ocaso submetendo-se à realidade sem poder dotá-la de nuances como em suas telas.
Bourgos ainda se permite uma subtrama na relação de Jean Renoir (1894/1979) com Andrèe, numa antecipação do que ele viria a ser. O cineasta que contribuiu para a percepção das relações sociais em filmes como “Boudu salvo das águas” (1937), “A Regra do Jogo” (1939) e “A Besta Humana” (1938), enquanto ela, que sonhava ser estrela, mudou o nome para Katherine Hessling, fez alguns filmes e desapareceu. Quem surge por inteiro na tela, no entanto, é Pierre-Auguste Renoir que ao longo de 60 anos produziu 6.000 mil obras, numa demonstração de sua criatividade.
“Renoir”. Drama. França. 2012. 111 minutos. Música: Alexandre Desplat. Fotografia: Mark Ping Bing Lee. Roteiro: Jerôme Tonnerre, Gilles Bourdos. Direção: Gilles Bourdos. Elenco: Michel Bouquet, Christa Theret, Vincent Rottiers.
(1) ARTE do Século XX, Taschen, 2005, pág.10