“A Voz Adormecida” Mulheres na resistência

A luta das militantes comunistas no pós-guerra Civil Espanhola é tratada neste filme do cineasta espanhol Benito Zambrano

O cinema muitas vezes desmente suas próximas máximas. Um delas é a manipulação das emoções do espectador. É o tipo “aqui você ri, aqui você chora”. E muitas vezes se reclama quando há reflexão demais e emoção de menos. Neste “A Voz Adormecida” reflexão e emoção caminham juntas. Benito Zambrano articula as sequências contrapondo uma ação à outra. A crueldade pode chocar de um lado e provocar afirmação de outro.

Trata-se de mostrar que o horror pode estimular a vítima a continuar sua resistência. Zambrano o exemplifica através da montagem/dialética na sequência da execução dos prisioneiros-republicanos pelo pelotão de fuzilamento franquista e a reação das mulheres que a escuta. Elas, do lado de dentro da prisão, ao invés de chorar entoam em resposta “A Internacional”. O engajamento delas emociona e as faz resistir às ameaças dos torturadores.

O grupo da cela em frente ao muro de execução é formado por mulheres jovens, maduras e idosas. Elas são as protagonistas deste filme que não escamoteia sua simpatia pelos militantes comunistas espanhóis. Não só elas, mas também os homens num equilíbrio que une resistência, relação amorosa e ideologia. Eles, mesmo depois da vitória franquista, garantida pelo apoio nazifascista, continuam a lutar para evitar a consolidação do poder de Francisco B. Franco (1892/1975), sustentado pela Igreja Católica. Uma aliança que permeia todo o filme.

Paulino só fala em compromisso

A partir da obra homônima da escritora espanhola Dulce Chacón, Zambrano e seu corroteirista Ignácio Del Moral estruturam o filme em vários eixos, tendo como centro a célula formada por Hortencia/Tensi (Inma Cuesta), Tomasa, Sóle e Reme. Os outros três se articulam a partir daí: a relação de Pepita com a irmã Tensi e o guerrilheiro Paulino Gonzalez (Marc Clotet); a sustentação dada por Clara aos demais militantes comunistas e, sobretudo, o apoio que o médico Fernando, de família franquista, dá aos guerrilheiros.

Ao contrário de muitos filmes com estruturação semelhante, nos quais os eixos se desprendem do eixo central, Zambrano consegue equilibrá-los. Eles dão sentido à luta do grupo de mulheres na prisão. E assim cria um drama-político de personagens, não de ação ou de discursos inflamados. Paulino quando fala de seu compromisso com o Partido, a resistência e seu papel como revolucionário não parte para verborragia ou o falso heroísmo. Tensi, semi-alfabetizada, quer melhorar sua educação, enquanto Tomasa, analfabeta, torna a frequente tortura a que é submetida exemplo de resistência.

O que as faz se engajar, se comprometer, é a compreensão da luta, da necessidade de resistir ao avanço do franquismo e da espoliação burguesa-latifundiária em sua região. São revelações que mostram o engajamento de seguimentos populares na resistência aos franquistas. Como Tensi mesmo grávida, elas são perseguidas pelos carcereiros fascistas. Zambrano, através da Madre e do Padre, reforça a visão de que a Igreja foi o principal esteio do franquismo, dado o ódio deles às comunistas e a quem a eles se opunha.

Tomasa se recusa a beijar a Imagem

É o que mostra a sequência em que as prisioneiras são reunidas no pátio da prisão para louvar a Padroeira e, para isto, terão de beijar sua Imagem. Tomasa se recusa. A violência sofrida por ela é brutal. Nem por isto, ela se entrega. Seu ateísmo não é simples recusa, é a convicção de que a religião pode servir à burguesia para oprimir a proletários e camponeses. E vai assim perdendo a crença em divindades nesta etapa da evolução da humanidade. A Madre ao brutalizá-la só contribui para este seu entendimento.

A coragem de Zambrano/Chacón está em passar o franquismo e sua sustentação pela Igreja Católica a limpo. Isto a exemplo de seu compatriota Carlos Saura que se valeu de simbolismos para tratar de religião, exército e sexo reprimido em “Ana E Os Lobos“ (1973) e relações familiares e hipocrisia em “Cria Cuevos” (1976. Zambrano mostra assim o engajamento da juventude dos anos 30/40 e seu compromisso com as transformações sociais.).

O que sobressai em “A Voz Adormecida” é a necessidade de essa juventude tomar a si a responsabilidade pela mudança radical das estruturas sócio-político-econômicas capitalistas, avançando para outro tipo de sociedade. A Guerra Civil Espanhola (1936/1939) atraiu milhares de jovens, intelectuais e comunistas para apoiar a República e combater os franquistas/monarquistas. Cerca de 800 mil combatentes morreram, dentre eles 175 mil republicanos e 110 nacionalistas/franquistas (1).

O jornalista estadunidense Herbert L. Matthews sintetizou em seu livro “Metade da Espanha Morreu” (1972), com extrema atualidade, a participação da juventude na Guerra Civil Espanhola: “A grande maioria dos jovens que se alistaram estava, como os inquietos jovens de hoje, descontentes com sua geração, revoltados contra aquilo a que hoje chamamos o Establishment, alienados”. (2).

“A Voz Adormecida”. (“La Voz Dormida”). Drama. Espanha. 2011. 128 minutos. Fotografia: Alex Catalán. Roteiro: Benito Zambrano, Ignácio Del Moral, baseado na obra de Dulce Chacón. Direção: Benito Zambrano. Elenco: Maria León, Inma Cuesta, Marc Clotet, Daniel Holguin.
(1, 2) Matthews, L. Herbert, Metade da Espanha Morreu, Civilização Brasileira, 1975, págs. 242, 198.

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