“Hannah Arendt” Vida sombria
Cinebiografia da filosofa judia-alemã Hannah Arendt dirigida por sua compatriota Margarethe von Trotta deixa suas contradições de fora
Publicado 21/08/2013 09:55
A cineasta alemã Margarethe von Trotta acostumada a cinebiografias (“Rosa Luxemburgo”, 1986) sintetiza a vida da filosofa judia-alemã Hannah Arendt (Barbara Sukowa), no curto período do julgamento do ex-chefe da SS Karl Adolf Eichmann (1906/1962), em Jerusalém, para melhor dimensioná-la. E dilata este tempo com entrechos que remetem à juventude de Arendt (1906/1975) e a suas contraditórias afinidades com seu professor, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889/1976).
São recursos que ampliam a compreensão de sua personalidade, lançando luz seus cinzentos recantos. Estes incluem sua relação amorosa com Heidegger (Klaus Pohl), que aderiu ao nazismo. Numa significativa sequência, von Trota mostra-o ajoelhando-se a seus pés. Ela sempre teve de se justificar por isso. E fechava-se para não se desvendar, menos em seu pequeno círculo.
Este se limitava a reuniões intelectuais em seu apartamento em Nova York, onde pontificava a escritora Mary McCarthy (Janet McTeer). Numa delas ela analisa com agudeza a superioridade de John Kennedy (1923/1963) em relação a Nixon nas eleições de 1960. Afirma que ele tinha maior visibilidade. É o início do predomínio do marketing na política do sistema capitalista.
Buecher prefere Eichmann preso
Esta ebulição de ideias é equilibrada pela relação de Arendt com seu segundo marido, o marxista Heinrich Blücher (1899/1970), professor de história da arte. Von Trotta mostra-os espirituosos, preocupados um com o outro, sem fugir à polêmica. Blücher (Axel Milberg) opõe-se a ida de Arendt a Jerusalém, temendo sua abordagem. O que a ajuda em sua decisão de cobrir o julgamento do nazista Eichmann, executor da “Solução Final”: liquidação de judeus, comunistas, homossexuais, ciganos, doentes mentais, nas câmeras de gás dos campos de concentração nazistas.
Eichmann chegara a Buenos Aires em 1950 com passaporte concedido pela Cruz Vermelha e nome falso de Ricardo Klement. Em 11/05/1960, é raptado pelo agente do Mossad (Serviço Secreto Israelense) Raphael Eitar e levado para Jerusalém a fim de ser julgado. Hannah propõe à revista “The New Yorker”, publicação de vanguarda na época, para cobrir o julgamento, de 11/04 a 15/12/1961. O que ela presencia contrasta com o que esperava do tribunal israelense. Eichmann não correspondia à imagem de um exterminador de seis milhões de judeus.
O Eichmann visto por ela sentado entre dois soldados, detrás da proteção de vidro é um burocrata, pessoa comum, que se justifica dizendo ser “apenas um cumpridor de ordens superiores”. Mesmas palavras do coronel Brilhante Ulstra, responsável por torturas nas masmorras da Ditadura Militar (1964/1985), perante a Comissão da Verdade, recentemente em Brasília.
Guerra virou puro horror
A visão de Arendt na época foi de que “os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam” (1) A este comportamento, ela chamou de “banalidade do mal”. Na verdade, o nazismo instituiu a eliminação possibilitada pela ciência e a tecnologia. Como o Governo Truman (1945/1952), ao fabricar bombas atômicas e lançá-las sobre Hiroshima e Nagasaki, matando cerca de 220 mil japoneses. Ambos trouxeram a guerra para o “horror do extermínio”, mudando as antigas táticas de combate.
A análise de Arendt do comportamento de Eichmann rendeu-lhe escaramuças com a comunidade judaica e os leitores da “The New Yorker”. Sobretudo por acusar as lideranças judaicas de não organizar seu povo para a insurgência. No entanto, a história registra resistência de judeus na França, Itália, Bélgica, Holanda e Dinamarca, havendo certa parcialidade dela. Assim, a polêmica terminou contribuindo para o sucesso do livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, publicado em 1963.
As opções de von Trotta deixaram de fora suas contradições. Arendt não se dizia nem de esquerda nem de direita, como os conservadores atuais. Sua biografa Elisabeth Young-Bruehl diz em “A Vida Discreta de Hannah Arendt” que ela apoiava a Lei dos Direitos Civis, mas era contra a política de integração do Governo Johnson (1963/1968) porque “forçava os brancos a conviver com os negros”. Via nisto a interferência do Estado na vida do cidadão (2).
Mesmo assim von Trotta, ao escolher o curto espaço de dois anos dá-lhe vitalidade. Ela aparece em pleno domínio de suas idéias ao defender sua tese da “banalidade do mal” numa sala lotada de alunos, amigos e desafetos. Uns se calam, outros aplaudem, outros se retiram. No entanto, se analisada com a argúcia que ela exige dos outros, a verdadeira Arendt, seguidora de Kant, Tocqueville e Heidegger, professora na Universidade de Chicago, centro do conservadorismo estadunidense, é bem outra. A ostra continuou enigma.
“Hannah Arendt” Drama/biografia. Alemanha/França. 2012. 113 minutos. Música: André Mergenthaler. Fotografia: Caroline Champetier. Roteiro: Margarethe von Trotta, Pam Kataz. Direção: Margarethe von Trotta. Elenco: Barbara Sukova, Axel Milberg, Janet McTeer, Ulrich Noethen.
(1) Arendt, Hannah, Eichmann em Jerusalém, Companhia das Letras, 1999, pág. 121.
(2) Young-Brüehl, Elisabeth, Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997.