Equilíbrio no arame
Com histórias que oscilam entre o kafkaniano e o surreal, cineasta brasiliense Gustavo Galvão discute os sonhos e os impasses da classe média brasileira
Publicado 30/10/2013 10:40
O entrelaçar de personagens que vazam de uma história para a outra e o estranhamento que causam dão a este “Nove crônicas para um coração aos berros”, do cineasta Gustavo Galvão (1976), em seu longa de estréia, um clima surreal. As histórias tratam do cotidiano dos personagens que circulam por ambientes kafkanianos, sombrios, decadentes. E suas vidas, cheias de impasses e desencontros, acabam se esfacelando. E embora sejam de classe média seus horizontes são de marginalizados, excluídos do “grande botim do consumo”, não por escolha, mas por lhes ser inalcançável. Assim, eles se contentam com o pouco que lhes sobra.
Eles em nada diferem dos lupens e proletários entregues às suas próprias escolhas. Os ambientes em que circulam são pobres, destituídos de bens de última geração, tão comuns nas novelas e filmes nacionais de hoje. A geladeira de Leopoldo está sempre vazia e o micro-ondas é pouco usado. O jantar de Júlio (Julio Andrade) e de sua mãe Denise (Denise Weinberg) limita-se a um minguado cardápio. A sala do músico André (André Frateschi) tem um rústico sofá, que mal acomoda três pessoas. Não bastasse isto, as roupas de homens e mulheres são de gente comum, longe do status quo fashion imperante.
No Brasil de Galvão os sonhos da baixa classe média se esboroam. Não diferem em muito dos lupens de Plínio Marcos (1935/1999) em “Dois Perdidos em Uma Noite Escura”, que se agridem; se estropiam, não por odiar um ao outro, mas por não identificar quem os lançou aos esgotos. Os homens e as mulheres de “Nove crônicas para um coração aos berros”, como eles, estão entregues a si próprios. A profissional do sexo Simone (Simone Spoladore) vive, literalmente, na cama onde atende seus clientes, Leopoldo hesita se aceita ou não a miserável vida de vendedor num corredor de prédio sem movimento.
Baixa classe média quer muito pouco
Galvão ao caracterizá-los desta forma e colocá-los distante do Brasil consumista, dos shoppings-centers, dos carrões e dos condomínios fechados mostra que existe uma realidade menos glamorosa. Não são apenas lupens e proletários que ainda se debatem para ascender um degrauzinho sequer; largas faixas da classe média também o fazem. E querem muito pouco. Denise, aposentada, quer conhecer o mundo para além de sua cozinha, André anseia sacudir os corroídos horizontes musicais de hoje, o alemão Philipp (Felipe Kannenberg) mudar de país, viver outro tipo de vida. São pessoas que o atual desenvolvimento sócio-econômico e de inclusão social ainda não alcançou.
As nove crônicas de Galvão, deste modo, destoam dos filmes brasileiros atuais, por enveredar por uma composição adversa. Não é o real que vale, mas a sua variante, ainda que ficcional. A dos excluídos dos segmentos médios, a tão decantada classe média, tida como sustentáculo do desenvolvimento sócio-econômico. Criativo, Galvão coloca-a em ambientes tão kafkanianos quanto sua própria existência. O escritório onde Júlio trabalha é cheio de pastas antigas e sem computador, como se o Brasil antigo persistisse. E Leopoldo é um solitário que consome lasanha e nem vida afetiva ou lazer tem.
A predominância do cenário, de paredes descascadas, móveis rústicos, mal iluminados, são extensões do estado psicológico dos personagens. É brilhante a composição e as situações vividas por Simone: está sempre a contar os clientes, os problemas criados por eles, a falta que fazem quando não aparecem. A cama é seu local de trabalho, de ganhar a vida, configurando uma relação de produção, de uso e de troca, sem gerar excedente. Apenas Júlio continua a se enquadrar nesta estrutura social carcomida, sem reclamar ou ansiar por mudanças.
Absurdo da ação provoca o riso
Além de mostrar o outro vértice do Brasil atual, as nove crônicas e o coração aos berros de Galvão são dotados de ácido humor. Das tiradas do entregador de lasanha e do faxineiro com Leopoldo à conversa de André com seu parceiro musical. Um riso provocado pela alienação de Leopoldo e pela incredulidade do amigo de André. Galvão ainda inclui em suas crônicas o drama da professora Vanise (Vanise Carneiro) acusada de seduzir a aluna. Elas vivem um caso particular, que só interessa a elas, uma vez consensual. Nenhuma atenção dão aos moralistas. A brincadeira delas ao redor da mesa prova o quanto são felizes.
“Nove crônicas para um coração aos berros” pertence à pequena lista de filmes brasileiros atuais cujo olhar contribui para se entender o país: ”O Som ao Redor”, “Sudoeste”, “Disparos”. O que nele vale não é ser pequena produção, pois Galvão soube tirar vantagem disso com criatividade, mas fugir aos modismos das comédias ligeiras e dos “grandes temas” que, normalmente, resultam em filmes medianos ou simplesmente ruins. Muitas vezes é melhor fugir ao ciclo corrente do que ser levado pela via mercadológica, ainda que o cinema autoral deva lutar pela bilheteria para continuar incomodando e apontando caminhos. Berrar é bom.
“Nove crônicas para um coração aos berros”. Drama. Brasil. 2012. 93 minutos. Trilha sonora: Assis Medeiros. Fotografia: André Carvalheira. Roteiro: Gustavo Galvão/Cristiane Oliveira. Direção: Gustavo Galvão. Elenco: Simone Spoladore, Júlio Andrade, Denise Weinberg, Leonardo Medeiros, Mário Bortolotto.