“Lore” Do mesmo veneno

Filme da cineasta australiana Cate Shortlander mostra as consequências da derrota do nazismo e o saudosismo da classe média hitlerista

A dispersão do exército alemão, pós-derrota no front e a divisão do país em zonas ocupadas pelas forças aliadas (EUA, Reino Unido, França e União Soviética), são o centro deste “Lore”. Uma vez perdidas as batalhas na África, Ásia e Europa, os oficiais alemães acabam deixando os filhos à própria sorte. Um deles, Dressler e sua mulher (Ursina Lardi), prestes a serem presos pelo exército estadunidense, orientam os cinco filhos a sobreviver em meio ao caos.

Caberá a mais velha, de 16 anos, Lore (Saskia Rosendahl) conduzir os quatro irmãos, Liesel (Nele Trebs), 9 anos, os gêmeos pequenos Gunther (André Frid) e Jungen (Mika Seidel) e o bebê de colo Peter (Nick Holaschke), através das áreas controladas pelos exércitos aliados. É nesta epopéia que a cineasta australiana Cate Shortlander e seu corroteirista Robin Mukherjee, a partir do romance “The Dark Room” (“O Quarto Escuro”), de Rachel Seiffert, desvendam a sustentação da classe média ao regime nazista.

O que se vê são homens e mulheres idolatrando Adolf Hitler (Áustria,1889/Berlim,1945). “Ele, se estivesse vivo, não deixaria isto acontecer”, diz uma mulher. O que reflete sua má consciência ao aderir a um sistema que lhe prometeu a supremacia racial ariana e a duração do III Reich por mil anos. Sãos as entranhas expostas do hitlerismo: 24 anos de existência (1921/1945), 12 de governo (1933/1945). A própria Lore, nazista convicta, assegura aos irmãos, em meio aos escombros, que “a Alemanha continua a existir”. O país, porém, seria dividido em dois: Alemanha Ocidental, capitalista, e Alemanha Oriental, comunista (1945/1990), e só reunificado 45 anos depois.

Diretora mostra adanação de Lore

A danação de Lore e de seus irmãos se dá através da Alemanha devastada, em meio a cadáveres, crianças famintas, idosos abandonados em fazendas e cidades destruídas. Eles vão sofrendo as consequências da política de “pureza racial” e das ambições imperialistas do regime nazista. Excelente contraposição de Seiffert e Shorthlander ao extermínio de milhares de crianças, adolescentes e jovens nos campos de concentração de Dachau, Treblinka e Auschwitz, junto com seus pais (Claude Lanzmann,“Shoah”,1988). Pelo simples fato de serem judeus, comunistas, ciganos ou opositores ao nazismo.

Lore oscila entre seu passado hitlerista, a destruição que vê em sua fuga e os impulsos destrutivos do nazismo. E reflete as ações da Juventude Hitlerista, espécie de “semente” para os “1000 anos de nazismo”. Ela, embora já experiente, não reage ao que lhe diz a avó (Eva-Maria Hagen): “Seus país não fizeram nada demais”. Inexiste nela a percepção do fracasso, da impossibilidade do arianismo e mesmo da perenidade do regime. Tampouco atenta para as origens de Thomas (Kai Malina), o judeu que a ajudou e a seus irmãos a fazer a travessia pelas zonas ocupadas pelas tropas aliadas. Inclusive se valendo de métodos bárbaros, primais, da espécie humana.

A relação entre algoz e vítima, em papéis invertidos durante a epopéia de Lore e seus irmãos, pouco importa. Nenhum deles se faz a pergunta crucial: Você é nazista? Você é judeu? Thomaz ajuda-a só por achar que são cinco crianças que precisam ser salvas, independente de sua tendência política ou etnia. Ele, acostumado à brutalidade nazista, aprendeu a sobreviver em meio ao extermínio. Não é herói, apenas não perdeu a humanidade perante o “mal absoluto”. Algo, porém, vicejou entre ele e Lore. É dele que ela irá se lembrar, em seu rito de passagem. A paixão ou o desejo não têm raça, etnia ou credo.

Shortlander passa ideia de inocência

Mesmo com estas implicações, Shortlander oscila entre definir Lore como nazista ou inocente útil. Suas convicções hitleristas ficam implícitas quando ela canta o hino hitlerista ou diz que a Alemanha continua unificada. Porém, em sua epopéia, ela mantém o ar inocente, de quem sofre, sem culpa. E adere à brutalidade primitiva pela via da sobrevivência. No entanto, esta ambiguidade centrada no saudosismo nazista da classe média alemã e a violência defensiva dos aliados passam a ideia de que a inocência inexiste. E Shortlander e Seiffert talvez quisessem dizer: a guerra não comporta pacifismo.

O apoio dado pela classe média alemã ao nazismo continua sendo tabu. O mesmo se dá com a dispersão das elites e oficiais alemães, pós-derrocada do regime nazista. As abordagens cinematográficas continuam sendo superficiais. Muitos sobreviventes do nazismo, como os da Ditadura Militar brasileira (1964/1985), continuam vivos, influentes e intocáveis. Filmes, por mais que se queira dividi-los em comerciais e autorais, sempre espelham a visão político-ideológica de quem os escreve, os produz e os dirige. Nenhum deles escapa às contradições do sistema e da época em que se vive.

“Lore”. (“Lore”). Drama. Alemanha/Austrália/Reino Unido. 2012. 109 minutos. Música: Max Richter. Montagem: Veronika Jenet. Fotografia: Adam Arkapaw. Roteiro: Cate Shortlander/Robin Mukherjee, baseado em “The Dark Room”, de Rachel Seiffert. Direção: Cate Shortlander. Elenco: Sakia Rosendahl, Kai Malina, Nele Trebs, André Frid, Ursina Lardi.

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