”O Exercício do Caos” Rústico cotidiano

O universo rural maranhense, o misticismo e as relações de produção moldam a vida de uma família neste filme do maranhense Frederico Machado

Aos poucos está sendo moldado o novo olhar sobre o nordeste brasileiro. Não é a mais a seca, o coronelismo, o nordestino sofrido ou a fome que ditam as narrativas. Os cineastas nordestinos estão mais interessados na mutação sócio-político-econômica em curso na região. Isto se evidencia em dois filmes emblemáticos desse ciclo de realismo descarnado: “O Som ao Redor”(2013), de Kleber Mendonça Filho, e “Boa Sorte, Meu Amor”(2012), de Daniel Aragão. A eles se junta agora Frederico Machado com seu “O Exercício do Caos”. Neste se destacam ciclo de produção, misticismo, repetitivo cotidiano, patriarcalismo e desejo configurado nos personagens.

Aqui as relações de produção feudais se perpetuam através da “meia”, a divisão do produto com o fazendeiro. A terra serve a um só tempo para retirar o sustento da família, quanto para pagar pelo seu uso. O latifundiário continua a retirar dela sua renda. No entanto, a figura do lavrador dependente foi substituída pelo meeiro insurgente. O Meeiro (AuroJuricê) não aceita a cobrança do capataz Antonio (Di Ramalho) nem cede às imposições do patrão. Ele se comporta como parceiro, não subalterno. Destoa, assim, do clássico perfil do lavrador explorado, embora não de todo submisso.

O Meeiro e suas três filhas adolescentes (Thainá Souza, Isabella Souza,Thalita Souza) dividem as tarefas de preparar a terra, plantar, colher e preparar a farinha de mandioca, produto de sua labuta diária. Cumprem uma rotina cíclica, que molda seu comportamento e a relação entre eles. O Meeiro exerce o duplo papel de pai e de feitor. A ele cabe orientá-las e impor-lhes a disciplina. E elas aceitam sem recusas. O que reflete o patriarcalismo, persistente nas relações no meio rural e não só neste.

Pai tem papel de senhor de corpos

Derivam daí as relações familiares e intimas entre o Meeiro e suas filhas. A Mais Velha prepara as refeições, sob seu olhar e controle atento. Este enfoque de Machado se presta a certo antropologismo, ajudando o espectador a entender o papel do pai/feitor/patriarca. Inclusive a aceitar, sem choque, a sua extensão nas relações íntimas/amorosas, cuja sequência causa, no máximo, estranhamento. Dá-se com naturalismo, sem choque. Ele, afinal, quando satisfaz seu desejo, o faz também em seu papel de senhor de corpos.

Há cumplicidade das irmãs quando isto ocorre. O desejo está presente na Irmã De Branco, sensual. Ela se destaca das outras, circula pela floresta, mostra-se. Diferente da Mais Nova, alheia ao que se passa ao seu redor, preferindo as brincadeiras no açude com as irmãs. A água substitui o parceiro, possui corpos, destaca formas. A câmera de Machado prepara o espectador para este rito de passagem, sem deter-se nelas, apenas apontando nuances. O espectador tem de juntar as peças para apreendê-las.

Neste giro, Machado cria em seu filme espaços de estar (a cozinha, o terreiro, a terra, o moinho, a floresta). Por eles circula a família sem nome (Meeiro e suas filhas) com naturalidade, por costume, por repetição. Frequentam o terreiro porque ali se dá o lazer, a hora de as filhas interagirem com o pai. É onde introduzem as lembranças da mãe, Dasdô (Elza Gonçalves), misteriosamente desaparecida. Ela escapa ao inconsciente e circula pela floresta, feito o “Tio Boone, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010), do tailandês Apichatpong Weerasethakul (Bangkok, 1970). É seu lugar de encontro com a filha, sua forma de perpetuar em seu imaginário.

Ritual de violência do Meeiro, pai

É desta forma que Machado desconstrói a narrativa, a exemplo do Robert Bresson (1907/1999) em suas obras Pickpocket”(1959), foge os padrões realistas, preferindo o naturalismo. É ritualista a preparação da tapioca, sua câmera se detém na frigideira, no prato, no mastigar do Meeiro e nos gestos da Filha Mais Velha. Uma referência ao húngaro Bela Tarr (1955), em “O Cavalo de Turim” (2011) ao se delatar nas refeições do pai: a batata quente lhe é servida pela filha, ele a esfria, soprando-a, comendo-a devagar. No entanto, estas leituras de Machado dão a seu filme um gestual ríspido, de autoritarismo e violência do feitor/pai, do pai/mãe, do homem contra a mulher.

Há ainda neste filme o elogiável matizar do cafuzo em seu habitat, destituído da estigmatização. O rosto, o falar, olhar do Meeiro e das filhas o confirma. Ainda que o transita por referências estéticas euro-asiáticas, é o povo brasileiro que se vê. Notadamente nos ciclos de produção feudais não superados. As modernas relações de produção, de trabalho, de distribuição da riqueza persistem não só no Norte/Nordeste; no Sul/Sudeste, tido como desenvolvido, elas continuam presentes.

Machado mostra sensibilidade, sobretudo, na maneira como trata a relação primitiva/sexual Pai/Filha, sem o pecaminoso, o explícito, o doentio. É tão sutil que quase não se percebe. Não é um filme fácil pelas barreiras que supera e o olhar destituído de reservas que exige. É, no entanto, uma bela construção.

O Exercício do Caos”. Drama. Brasil. 2013. 82 minutos. Colorido. Montagem: Raimo Benedetti. Trilha sonora: Joaquim Santos. Fotografia: Frederico Machado. Roteiro/direção/câmera: Frederico Machado. Elenco: Auro Juricê, Di Ramalho, Thainá Souza, Isabella Souza, Thalita Souza, Elza Gonçalves.

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