“Azul é a cor mais quente” impasses do desejo

Cineasta franco-tunisiano Adbellatif Kechiche trata das escolhas amorosas de duas jovens francesas e de seus impasses de gênero

Na sociedade capitalista atual, em que até o desejo é mercadoria, é difícil um filme provocar escândalo. Este “Azul é a cor mais quente” é o típico caso de obra que gera, no máximo, curiosidade. Isto porque hoje os filmes sobre sexo são vistos por vários segmentos sociais em suas sessões privé. Ainda mais quando se trata de opções sexuais e de gênero. E neste caso o espectador poderá apreender os dilemas da jovem Adèle e suas escolhas amorosas, sem moralismo ou temor de ser visto como voyeur.

Entretanto, não são as tórridas cenas de sexo lésbico que o encantam nesta obra do cineasta franco-tunisiano Adbellatif Kechiche, mas a forma como ele filma as duas garotas. Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux). Elas se entregam uma à outra, numa ânsia de prazer e êxtase, sem culpa ou digressões morais. O envolvimento delas tem uma delicadeza que reforça a “estética quente” do filme. De corpos que desabrocham para o desejo, com beleza e suavidade.

Porém, Kechiche transforma o espectador em voyeur e seu cúmplice ao desvendar a intimidade de Adèle. Sua câmera devassa-a para satisfazer o desejo de ambos. Esse erotismo é mais hétero que o despertar de Adèle para o lesbianismo. E revela uma dicotomia entre o flagrar erótico da câmera e sua relação com Emma, ou seja, uma tentativa de Kechiche de mostrar as carências sexuais da jovem de 15 anos e justificar suas oscilações entre o homo e o hétero.

Adèle é vítima do neoliberalismo

Porém, o filme não se limita à relação Adèle/Emma, duas garotas classe média, tentando construir seu gênero e definir sua opção sexual. É mais complexo do que isto. Kechiche, na verdade traça o perfil da juventude francesa atual, insegura quanto ao futuro, ao enfrentar o desemprego, a falta de investimentos em educação, sobrevivendo de bicos e trabalho mal pago. Ela se mostra preocupada, interessada em ter uma profissão e encontrar seu espaço, em meio ao caos gerado pelo neoliberalismo. Emma, ao contrário, já encontrou o seu e vive em relativa segurança.

Kechiche pega então este microcosmo e o transforma num painel sobre a juventude gay francesa. Não a dissocia de suas relações com a família e os colegas de escola, caso de Adèle, e do universo gay ao qual se integra Emma. Elas, além disso, unem-se aos protestos contra a falta de verba para a Educação e a Parada LGBT. Evitam viver, desta forma, num circulo a parte, marginalizado, como querem as reacionárias “colegas de classe” de Adèle. A sequência em que algumas “amigas” a pressionam para se assumir lésbica é uma mescla de bullying e conservadorismo religioso-burguês.

Adèle é uma garota frágil, carente, solitária. Emma é seu lado intenso, assumido, que vive de acordo com sua construção de gênero e sexo. A relação delas é de entrega e intensa paixão. De estarem juntas, ter seu canto, fazer planos. E como todo casal, registra Kechiche, tem seus papéis fixos, em que cada uma assume um papel, como na relação hétero. Emma toma a si o de chefe da casa, cabendo a Adèle o de dependente. E Kechiche observa que, mesmo nas relações homo, o machismo e o autoritarismo se impõem.

Velhos papéis, novas exigências

Mesmo na decadente sociedade burguesa é necessário desconstruir os padrões patriarcais milenares, edificando outro tipo de relação entre casais héteros e casais homos, levando-os a compartilhar, a conviver em igualdade de condições. A fúria de Emma é de tal ordem que Adèle desmorona. Não dá a mínima chance de a outra lhe explicar suas oscilações de desejo, pendendo entre o hétero e o homo. É uma brilhante sequência em que o novo ainda não se desprendeu do velho e o repete sem atentar para as duplas perdas e danos.

Kechiche nestas sequências atesta seu domínio cênico, de direção, de estética, de posição de câmera. Esta se move, mantendo-se à altura do ombro do personagem. Nas sequências com vários deles, todos se destacam como nos filmes de Robert Altman (1925/2006), principalmente em “Nashville” (1975), fazendo a narrativa avançar, reforçando os personagens principais (sequências. das discussões de Adèle com as “colegas de classe”, de Adèle com os amigos de Emma, delas nas manifestações estudantis e LGBT).

O universo em que elas transitam é intelectual: a alta literatura (Pierre Marivaux, 1688/1723, “A Vida de Mariana”, e Chordelos de Laclos, 1741/1803, “As Relações Perigosas”) e as artes plásticas. A aceitação dos papéis construídos por elas difere nos ambientes em que vivem. O de Adèle é conservador, o de Emma liberal, uma das facetas da classe média, em seu papel de rejeitar por influência religioso-burguesa ou aceitar por ser inevitável ou por demonstrar certa compreensão das novas construções de gênero e de sexo. Kechiche com sua visão ajuda a entender estas diferenças. Mas há muito ainda a ser construído.

Azul é a cor mais quente”. (“La Vie D´Adèle”). Drama. França/Bélgica/Espanha. 2013. 179 minutos. Edição/montagem: Camile Toubkis/Albertine Lastera. Fotografia: Sofian El Fani. Roteiro: Abdellatif Kechiche/ Ghalya Lacroix, baseado na revista em quadrinhos “Le Bleu Est Une Couleur Chaude”, de Julie Maroh. Elenco: Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim Kechiouche, Benjamin Sikson.

(*) Palma de Ouro no Festival de Cannes 2013.

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