“O Lobo Atrás da Porta”

Diretor brasileiro Fernando Coimbra recupera o clima dos filmes policiais brasileiros dos anos 1960 em obra de estreia sobre desejo e crueldade.

De repente, numa sequência de desejo e sedução deste “O Lobo Atrás da Porta”, uma espectadora grita no cinema: “Tem mulher safada, né!”. Sua reação diante dos trejeitos e olhares femininos traduz certo comportamento conservador às avessas. Mas também a capacidade do filme refletir a realidade do meio-social da espectadora. Ela quer a garota Rosa (Leandra Leal) reagindo ao assédio do madurão Bernardo (Milhem Cortaz), segundo seus padrões morais e comportamentais.

Na realidade, Rosa não está se submetendo, está atraindo Bernardo para seu círculo, como abelha rainha. A maciez de sua voz, a distância que mantém dele, a maneira como abre o círculo para ele entrar, provocou a reação da espectadora. Ela, a partir daí, mesmo com algumas reversões, estará sempre no comando. Isto não implica culpa, safadeza, tão só a duplicidade de intenções, tanto de Bernardo quanto dela. Ele por sexo consensual, ela por compulsivas intenções.

Assim o diretor/roteirista Fernando Coimbra termina por desmontar o papel reservado às amantes e às companheiras no universo sócioconjugal. A umas as relações extraconjugais permitidas ao homem, às outras o de exemplares mães de família, às quais são vetadas quaisquer “extras”. Coimbra monta os entrechos do filme invertendo estes papéis, fugindo ao espectro burguês-religioso-conservador. Os ardis de Rosa para desconstruir o protegido lar de Bernardo são engenhosos e frios.

Rosa é a mulher fatal-camaleo
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Desta forma não temos uma “mulher safada”, Coimbra torna-a um personagem rico e multifacetado, modelo de “filme noir”. Rosa é a “mulher fatal” do século 21 cuja ambição é construir seu espaço. E confirma-o ao demonstrar prazer atraindo os preciosos entes queridos do amante: sua companheira Silvya (Fabíola Nascimento) e sua filhinha Clara. Tornam-se tão íntimas que segredo algum existe entre elas. E, no entanto, continua frágil, sedutora, cativante, verdadeira camaleoa.

A estruturação dos entrechos mostram-na por inteiro: de classe média, operadora de marketing desempregada, vê no controlador de ônibus, de baixa classe média, a solução para estabilizar a vida. Ela vai montando seu plano, passo a passo, sofrendo reveses, recompondo-se, numa disputa entre o estabelecido e o desestabilizável: a família, a criança e o pai. Traço comum aos dramas familiares hollywoodianos, para atrair a simpatia do público para os personagens.

Coimbra usa parte desta técnica dramatúrgica, opondo a inocência da criança à serenidade de Rosa. Ela não externa suas intenções, faz tudo com normalidade. Como durante a irritação de Bernardo com ela, por descobrir o revólver em sua bolsa; “Mas por que, Rosa? O que vai fazer com ele? O Rio de Janeiro é uma cidade perigosa” Ela não se justifica. Se ele continuasse a questioná-la, veria a maldade nela concentrada.

Delegacia parece centro de produção

No entanto, o fio policial da trama surge restrito à delegacia, que mais parece um centro de produção de depoimentos. Tudo tem de ser urgente, como numa produção em série. Mas há espaço para deboche. O delegado (Juliano Cazarré) usa de artimanha para confundir as testemunhas e pressionar Rosa a entrar em contradição. “Este café está aguado… Vai esfriar, termine de falar antes de eu terminar… (citação não literal)”. É então que o café, mesmo frio, transborda.

Esta mescla de drama e policial intercala um longo flashback, criando expectativas não só pelos ardis de Rosa, como pelo que os personagens escondem individualmente. Todos externam seu instinto selvagem, de eros sucumbir a thanatos, de a loba ferida mostrar suas garras. E a relação amorosa Rosa/Bernardo, de início imposta pelo desejo, termina unindo prazer e vingança. São mais instintos que reflexão.

É o que se vê no plano sequência de cerca de cinco minutos. Enquadrados através da grade da janela da cozinha, eles se questionam, se amam, numa tensão crescente, trazendo de volta o mal-estar emanado dos filmes policiais brasileiros dos anos 60, que reacendiam forte odor de morte. O medo de Tio Medonho (Eliezer Gomes), em “Assalto ao Trem Pagador” (Roberto Farias, 1962), ou a antevisão do fim, em “Mineirinho, Vivo Ou Morto” (Aurélio Teixeira, 1967).

Coimbra traz esse clima para seu filme. Durante todo o tempo há o temor da morte. De Rosa ao ser forçada por Bernardo ao que não quer, de Silvya e ele terem medo de acontecer o pior com a filha. A Rosa que antes era só a amante, impõe a dúvida: Se agiu como agiu, ainda fica a questão: é justo submetê-la ao sacrifício, mesmo em se tratando de um ardil por ela montando? Fica a discussão moral, ética, do direito à vida nas circunstâncias em que ocorreram. Melhor refletir sobre isto do que dizer: “Tem mulher safada, né!”. A discussão é bem outra.


“O Lobo Atrás da Porta”
. Drama/policial. Brasil. 2013. 95 minutos. Montagem: Karen Arkeman. Trilha sonora: Ricardo Cutz. Fotografia: Lula Carvalho. Roteiro/direção: Fernando Coimbra. Elenco: Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento, Juliano Cazarré.

Prêmios: 61º Festival Internacional de Cinema de San Sebastián – 2013: Melhor filme – Horizontes Latinos.
– 15º Festival do Rio – 2013: Melhor filme de ficção.
– Festival Latinoamericano de Havana – 2103: Prêmio Coral: Melhor Primeiro Filme.

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