Memórias da saga comunista (VI)

João Batista Lemos, que durante 20 anos ocupou a Secretaria Sindical do CC do PCdoB, foi reeleito presidente do Partido no Rio de Janeiro, para onde se transferiu há alguns anos. Militante comunista histórico, além de boníssima pessoa, presto-lhe homenagem publicando, no sexto capítulo desta série “Memórias da saga comunista”, perfil escrito para o livro “Vida, veredas: paixão”, que produzi, em 2012 para a Fundação Maurício Grabois. 

Na época, Batista recém havia se transferido para o Rio de Janeiro, ainda como vice-presidente estadual do PCdoB.

“É bom entrarem em contato com esse Lula" 

Então o Gordo falou:

– É bom vocês entrarem em contato com esse Lula. O cara é uma liderança.

O Gordo era o metalúrgico Antonio Alves, secretário sindical do Partido em São Paulo, e João Batista Lemos, ajudante de produção na fábrica de locomotivas da GE, em Campinas. Organizava a oposição sindical entre os metalúrgicos.

Foram em três – Batista, Alemão e Mané – pedir o apoio de Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Só de bigode, Lula mostrou à comitiva de Campinas o distintivo do Corinthians, elogiou o time e prometeu apoio.

Um ano depois o Gordo falou:

– Batista, é lá no ABC que a coisa vai ferver. Nós achamos que você deve se deslocar para lá.
Em pouco tempo Batista já havia se estabelecido em São Bernardo, arrumara uma namorada que trabalhava na Souza Cruz, em São Paulo, com quem viria a se casar mais tarde, e um emprego na Wolks.

A greve na Saab-Scania, em maio de 1978 (operários de braços cruzados ao lado das máquinas), foi preliminar do incêndio que estava por acontecer no ABC nos anos seguintes, senha para o ingresso da classe operária na cena política brasileira. Na Wolks, onde apenas alguns setores pararam, Batista ouviu de uma companheira: “O Lula falou que está com um esquema aí que vai estourar”.

O estouro começou em 1979. Batista já tinha organizado uma célula do partido na Wolks – cerca de 14 militantes – e, no final do ano, passou a trabalhar com a recém lançada Tribuna da Luta Operária. Vendida nas portas das fábricas, sucesso entre os trabalhadores. Centenas de jornais numa tacada só.

A greve começou em algumas fábricas de São Bernardo e se espalhou pelo ABC. Abril de 1979: a primeira greve geral na fortaleza industrial de São Paulo depois do golpe de 1964. Quando a polícia passou a impedir os piquetes nas portas das fábricas, eles foram transferidos para onde saíam os ônibus, nos bairros do ABC e de São Paulo. Mas a ditadura reagiu, decretando intervenção no sindicato mais combativo, o de São Bernardo, logo cercado por soldados, cavalos e cachorros. A diretoria passou a se reunir na igreja matriz, franqueada aos trabalhadores. Foi quando Lula propôs um recuo. Recuar para negociar. Ao final, os metalúrgicos aceitaram a proposta patronal: 69% de reajuste salarial.

A esta altura o PCdoB já estava organizado em quatro empresas: Wolks, Vilares (a fábrica do Lula), Scania e Ford. Ao todo, pouco mais de 30 militantes, um pequeno exército.

Ainda em 1979 o sindicato de São Bernardo começou a articular a greve do ano seguinte. “Vamos preparar uma greve prolongada”, disse Lula.

Aos 21 anos de idade João Batista Lemos resolveu abandonar os estudos e tornar-se operário. Ingressou na fábrica de locomotivas da GE, em Campinas. A transformação social – que então ele já chamava de revolução – partiria das fábricas, não das escolas. Décadas depois reconheceria o equívoco da constatação, atribuindo-a a um sectarismo de época. Mas em 1974 ninguém o demoveria da decisão tomada. Desde os 15 anos metera-se em política, no Colégio Estadual Hildebrando Siqueira e na Frente Estudantil Secundarista (FES), um grupo não muito organizado de jovens que, pouco tempo depois, aderiu à Juventude Operária Católica (JOC). Nada surpreendente – essa inclinação militante do pequeno Batista – numa família em que sete dos 14 filhos de Isaura e do dentista Arnaldo Lemos de algum modo agiam contra a ditadura militar.

Logo após ligar-se à JOC, entre 1970 e 1971, conduzido pela irmã Áurea, Batista conheceu militantes da AP que já transitavam em direção ao PCdoB. Um deles lhe passou textos de Mao Tsé-tung e o famoso livro vermelho de pensamentos, orientado-o a discuti-los com amigos e colegas. Era um professor de cursos supletivos chamado José Ricardo Magalhães, cuja verdadeira identidade Batista só viria a conhecer anos mais tarde: Bernardo Joffily, que logo em seguida deixaria o País para trabalhar na rádio Tirana. Mas tornar-se operário nada teve a ver nem com a AP, nem com o PCdoB, nem com a JOC. Foi decisão solitária do inquieto revolucionário que desejava estar na alma da revolução.

Cinco anos depois de tornar-se operário e três após sua mudança para São Bernardo, Batista dava razão ao Gordo. Ali no ABC é que a coisa iria ferver – ou melhor, já estava fervendo – e aquele Lula era mesmo uma liderança e tanto. A preparação da greve prolongada proposta pelo metalúrgico da Vilares começou com a criação da Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, gestora do fundo de greve. A comissão de mobilização reunia 400 operários, dos quais 14 escolhidos para substituir a diretoria caso ela fosse presa. Batista estava nessa turma de comando, representando a Wolks.

Uma liderança mesmo, aquele Lula. Chegava carregado nas assembléias do estádio da Vila Euclides, aquelas fabulosas reuniões que juntavam dezenas de milhares de trabalhadores. Por falar numa delas, Batista foi demitido da Wolks. E Lula propôs que, na pauta de reivindicações, se incluísse a readmissão do companheiro. E assim, em 1o de abril de 1980, começou a greve histórica de 41 dias que paralisou o coração industrial do Brasil. Como se previu, o sindicato acabou sofrendo intervenção e a diretoria, presa. Foi quando entrou em ação o grupo dos 14 no comando da greve. Reunia-se nas igrejas, nenhum dos seus membros dormia num mesmo lugar, invioláveis nas cidades gêmeas do ABC, sob o manto protetor da multidão de operários.

As forças de oposição à ditadura, e solidárias com os metalúrgicos em greve, decidiram realizar em São Bernardo uma comemoração unitária do 1o de maio. A ditadura agonizava, mas ainda era forte e decidida. A Polícia Militar cercou São Bernardo, ergueu barreiras, revistou pessoas e veículos, colocou helicópteros sobrevoando a cidade. Mas não conseguiu impedir que a multidão – inclusive de São Paulo e adjacências – afluísse para a missa na igreja matriz. Então distribuíram à farta bombas de gás e cacetadas, ao que os trabalhadores respondiam com os paus e pedras de sua indignação. A igreja acolhia feridos ensanguentados. Em meio à batalha campal, o grupo dos 14 resolveu iniciar passeata até a Vila Euclides. Cerca de 150 mil trabalhadores ocupando as ruas de São Bernardo. A polícia, acuada, recuou.

Quarenta e um dias após o início da greve, os trabalhadores voltaram ao trabalho sem nenhum ganho, com o sindicato sob intervenção e a diretoria na cadeia. Voltaram derrotados, mas com ódio de classe de uma ditadura e um patronato virulentos e intransigentes, só interessados em engordar seus lucros tirando o coro dos operários.

Lula, preso no DOPS desde 19 de abril, foi solto em 20 de maio, sendo condenado, no ano seguinte, à três anos e meio de prisão como incurso na Lei de Segurança Nacional. A pena acabou anulada pelo Superior Tribunal Militar (STM). A intervenção no sindicato só terminaria em abril de 1981. Apesar da derrotada, a greve fomentou, não apenas entre os operários do ABC, mas também entre tantos outros segmentos da sociedade, uma consciência decisiva para a fermentação social e política que corroia a ditadura já a partir do final dos anos 70.

Ainda em 1981, a disputa no sindicato colocaria Lula e Batista (e seus companheiros de partido e alguns outros aliados) em campos opostos. Batista, que depois da demissão na Wolks, trabalhava como inspetor na Mercedes Benz, desejava compor uma chapa unitária com Lula e os militantes do recém-fundado Partidos dos Trabalhadores. Mas surgiram incompreensões de ambas as partes. De um lado os petistas não desejavam compor, queriam chapa puro-sangue, refutando o que chamavam de ”grupos ideológicos” que, a seu ver, não tinham o sindicato como centro de direção; de outro, os comunistas (e vários segmentos da esquerda não petista), querendo demarcar campo com o social-democrata Lula, postulavam chapa à margem da hegemonia do PT. Batista não concordava, mas seguiu a orientação partidária. Resultado: a chapa liderada por Jair Meneguelli, apoiada por Lula e pela junta governativa que sucedeu aos interventores do sindicato, derrotou fragorosamente a liderada por Osmar Mendonça, o Osmarzinho, Enilson Simões de Moura, o Alemão, e Batista. De quebra, este foi demitido da Mercedes Benz. Somente seis anos depois, na conferência paulista do VII Congresso do partido, é que se fez autocrítica desse episódio.

Em 1982 Batista liderou, como desempregado, a ocupação do Centreville, em Santo André, um conjunto de classe média de 640 moradias abandonado fazia cinco anos. Dirigida pelo PCdoB, foi a primeira ocupação vitoriosa de conjunto habitacional após o golpe de 1964. Batista participou, como militante de base, do processo, concluído em 1986, de criação da CGT, central que competiria com a CUT, fundada três anos antes. Na base da divergência, concepções táticas diferenciadas do PT e do PCdoB na época, este último obstinado em construir a unidade popular mais ampla possível na luta contra a ditadura militar, enquanto o outro seguia essencialmente exclusivista. Por essa época Batista já integrava o Comitê Central, eleito pelo VI Congresso, de 1983, compondo o Secretariado com João Amazonas, Dynéas Aguiar, Rogério Lustosa, Renato Rabelo e Ronald Freitas.

Em 1988, junto com Nivaldo Santana, Sérgio Barroso e Renildo Souza, entre outros, dirigiu o processo de formação da Corrente Sindical Classista (CSC). Em pouco tempo a corrente desligou-se da CGT, estabelecendo aliança com a CUT, à qual se integrou a partir de 1991. Em 2007, Batista estava à frente do processo de criação da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). Em apenas quatro anos de existência, a CTB já estava entre as seis centrais sindicais legalizadas no País, representando cerca de oito milhões de trabalhadores.

Em 2012, Batista era secretário adjunto de relações internacionais da central e cumpria o mandato de vice-presidente da Federação Sindical Internacional, para o qual foi eleito em abril de 2001. Recém liberado da Secretaria Nacional Sindical, assumiu a Vice-Presidência do partido no Rio de Janeiro.

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