“Boi Neon”, seres do agreste
Com aguçado olhar, cineasta pernambucano Gabriel Mascaro desvela fantasias, contradições e impasses do homem comum através de vaqueiros.
Publicado 24/02/2016 13:27
Poderia ser mais um filme em que os personagens reforçam a mística de coragem, romantismo e testosterona do vaqueiro de rodeio, assediado por belas garotas, em trajes de vaqueira, para reforçar uma história recheada de clichês e escapismo. Neste “Boi Neon”, seu diretor e roteirista Gabriel Mascaro (Ventos de Agosto) os reverte ao estruturar a narrativa em entrechos, sem valer-se de leitmotiv que impulsione a ação desde o início, com o intuito de cativar o espectador.
Todas ações dos personagens se configuram e ganham sentido através desta construção. Suas motivações são, no entanto, descontínuas, nunca se completam, fugindo às clássicas narrativas. Dentre elas o sonho de Iremar (Juliano Cazarré), de se tornar estilista de confecções no Nordeste. Ou as hesitações da adolescente Cacá (Alyne Santana), de permanecer no rodeio ou ir ao encontro do pai. Eles terminam por refletir uma vida cotidiana ditada pelos organizadores dos rodeios.
Inexiste inclusive uma narrativa a desenvolver uma história, que, na verdade, em “Boi Neon”, inexiste. Tão só inconclusos entrechos a não completar o arco da ação, e nem se trata aqui de elipse. Isto se vê na discussão de Cacá com a mãe, Galega (Maeve Jinkings), integrante da trupe de vaqueiros, sobre o melhor ambiente para sua formação. O do rodeio itinerante ou o da fixa casa do pai? O arco de ação então não se completa. E, como na vida, a imposição do meio, sem resistência, se impõe.
Trio concentra a ação do filme
Estas ações fluem sem trama central ou sub-tramas, sustentadas pelo núcleo dramático, formado pelo trio Iremar/Cacá/Galega, em torno dos quais os demais circulam. Mesmo os fios: I -da vendedora de perfume; II – do vendedor de lingerie; III – do boi neon, a eles se vinculam. E também se intercambiam, como na sequência de Iremar trocando impressões com Galega sobre a criação de manequins e adereços e roupas para vesti-las, tal estilista em busca de qualificada assessoria.
Outra vertente do trio é a relação de Cacá com Iremar, projetado “pai, amigo, namorado”, por ela. Com quem se aconselha sobre viver ou não com o pai verdadeiro, mostrando-se carente ao lhe pedir um abraço e atraída pelas facilidades do rodeio, principalmente as saídas noturnas, às quais a mãe se opõe. Enfrenta, deste modo, seus impasses de adolescente de pais separados e seu rito de passagem de garota vivendo com a mãe em barracas e dormindo em redes ao lado de maduros vaqueiros.
Também Iremar tem suas fantasias, derivadas da vida itinerante em cima de caminhões, onde divide a carroceria com o gado de raça. Não se hospeda em hotéis ou pensões, fica onde der. Seu trabalho é preparar os bois, passando pó na calda deles para facilitar o golpe para a vitoriosa queda. Em nada difere dos trabalhadores do agreste, porquanto leva uma vida sem a fugaz glória, em meio ao clima de festas dos peões vencedores.
Minotauro bloqueia sonho de poder
Deste modo, ele adia o choque de realidade, devido aos obstáculos a superar. A intervalos o boi-neon se configura no palco no corpo da cantora embalada pela tecno-música e por intensos fachos de multicolores luzes. Não é só o boi-neon, projeção de sua fantasia, também traduz seu desejo de transfiguração. É o minotauro a ser vencido, numa insurgência contra o miserável cotidiano entre fezes de boi e a rede onde dorme no barracão.
Este árduo cotidiano, de pouco espaço para a catarse e a evasão, não está isento de humor. Há riso na chegada do “exótico” vaqueiro Júnior (Vinícius de Oliveira) ao barracão de madrugada acordando todos, inclusive Cacá e Galega. Mas é na tentativa de Iremar e outro vaqueiro subtraírem sêmen de cavalo de raça, na hora do leilão do animal, para vender, que as gargalhadas correm soltas. Eles não passam de trapalhões.
Contudo, este encadear de entrechos está alicerçado numa criativa estética de denso clima, em planos-sequência, plano aproximado e grandes planos em ambientes mergulhados em claro-escuro, sombras e luzes intensas (veja as sequências do boi-neon). Principalmente no elaborado plano-sequência do encontro de Iremar com a grávida vendedora de perfume a mesclar música e performance, na bancada da fábrica de roupas.
Ter ou não história não é a questão
Em todo o filme há uma combinação perfeita desta estética, indo do roteiro e direção de Mascaro à fotografia de Diego Garcia e à edição da dupla Fernando Epstein/Eduardo Serrano. Mostra que ambos criaram em função dos entrechos, dos ambientes (cenários) e entenderam que montar não é encadear uma cena após a outra, mas também criar. O espectador sai com a impressão de que a estética enriqueceu o filme e ter ou não ter história depende da concepção dramática e estética do diretor.
Boi Neon. Drama. Brasil/Holanda/Uruguai. 2016. 101 minutos. Edição: Fernando Epstein/Eduardo Serrano. Trilha sonora: Otávio Santos/Carlos Montenegro. Fotografia: Diego Garcia. Roteiro/direção: Gabriel Mascaro. Elenco: Juliano Cazarré, Alyne Santana, Carlos Pessoa, Maeve Jinkings, Vinícius de Oliveira.
(*) Festival de Veneza 2015, Mostra Orizzonti: Prêmio Especial.
Festival do Rio de Janeiro 2015: Prêmios de Roteiro, Fotografia e Atriz Coadjuvante (Alyne Santana).
Festival de Varsóvia 2015: Melhor Filme.