“Roma”, Mulheres e outras exclusões

Com um olhar na subjugação da mulher e outro na estética, cineasta mexicano Alfonso Cuarón traça um painel do México da década de 70.

Em curta cena neste “Roma”, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón (28/11/1961) põe duas sofridas personagens num canto da casa, de modo a que o espectador se concentre só na que domina a cena. Magoada com o que acaba de lhe acontecer, a patroa Sofi (Daniela Demesa)) comenta em tom amargo, nem por isso menos irônico: ”Digam o que disserem; nós mulheres estamos sempre sozinhas”. A frase define não só o seu estado psicológico como também o de sua empregada Cleo (Valitza Aparício). Abandonadas e desenganadas só lhes resta a reconstrução de suas vidas.

Ambas estão diante dos impasses tratados por Cuarón como reflexos da condição da mulher na sociedade mexicana (e não só nela) no início dos anos 70. Toda a narrativa desenvolvida sob o ponto de vista da jovem Cléo, de origem indígena, tem como contraponto a relação de Sofi com seu companheiro Antônio (Fernando Grediaga). E assim Cuarón estabelece a diferença de classe entre elas: uma doméstica, a outra formada em química. Ou seja, a proletária e a mulher de alta classe-média. Esta dualidade irá fixar as diferentes e conflituosas situações vividas por elas.
Cuarón não matiza as relações de classe, mas estão explícitas pela multiplicidade de tarefas de Cleo. Ela é a um só tempo faxineira, babá e mediadora das desavenças entre os quatro filhos do casal Sofi/Antônio. Do adolescente Tonho (Diego Cortina Autrey), passando pelo do meio Paco (Carlos Peralta) e as crianças Sofia (Marina de Tavira) e Pepe (Marco Graf). Da manhã à noite, ela se ocupa da lavagem da casa e só encerra sua labuta à noite, quando elas dormem. Inexiste uma jornada de trabalho, mas a entrega aos afazeres, conforme eles surgem em qualquer hora do dia.

Predominam letárgicos resquícios medievais

Trata-se de letárgicos resquícios medievais pelos quais a/o empregada/o se entrega às exigências do senhorio. Não há contrato de trabalho, nem fixação de salário, de horário, de direitos trabalhistas. Ela/ele é supostamente integrada/do à família. Tampouco ela tem os mesmos direitos que os filhos do casal. A dignidade conquistada através da força de trabalho remunerada, avaliada e respeitada é negligenciada. Por outro lado, a exploração é consolidada, como no caso de Cléo, pela falta de organização de classe e a consciência do valor real de seu trabalho.

Numa das sequências cruciais da narrativa, Cuarón explicita de forma clara e direta o quanto as relações de senhoria alienam Cléo da família. A idosa Tereza (Verônica García), mãe de Sofi, quase não consegue interná-la no hospital porque não sabia o correto nome dela, nem data de nascimento, nem se tinha “plano de assistência médica (?)”. Só conseguiu fazê-la chegar ao hospital para uma emergência. Sem estabelecer conflitos entre patroa e empregada, Cuarón dá conta do tema central: a posição da mulher, seja empregada ou patroa, na estrutura social do México em 1970.

Desde a abertura dos entrechos, quando foca água e espuma a escorrer escada abaixo no emaranhado de mangueiras a se espalhar pelos corredores e escadas, ele estabelece o clima imperante na mansão. Simbologia a destacar a repetitiva tarefa e os riscos de uma queda levá-la ao hospital e deixá-la fora do trabalho. As nuances psicológicas matizadas pelo claro-escuro da fotografia de Guarón a assumir a direção do longa-metragem de 135 minutos, das imagens e da montagem estabelecem os contrastes entre o universo de Cléo e os de sua patroa Sofi.

Antônio deixa claro ser o chefe da família

Em pleno domínio da construção dramática e narrativa, Cuarón foge ao esquematismo ao optar pelo encadeamento por entrechos. Elimina, desta forma, o leitmotiv que desencadeia a ação nas narrativas lineares. Logo nas primeiras sequências os personagens principais já estão em seus ambientes. Cléo na limpeza do corredor, Adela na cozinha, Sofi na sala e as crianças, principalmente Sofia, a brincar. Antônio surge muito depois. É o personagem enigmático do filme. Cada um deles irá ganhar destaque no desenvolver dos entrechos, notadamente Cléo a trançar pela mansão.

O modo como as mulheres transitam pela casa e as ruas são de quem está sob o controle de Antônio. À sua chegada todos mudam de comportamento. Ele esbraveja contra o mal cheiro na garagem devido à sujeira dos cães. E procura ser atencioso com os filhos e a mulher. Mas sempre deixa claro quem, na verdade, é o chefe de família. Também não é de abrir-se para além do imaginável. Seu interesse maior, percebe-se, é o automóvel, seu bem mais precioso, dado ao status dele derivado. Mostra-se a partir daí como o pequeno burguês enfastiado com a família.

É neste universo que Cuarón amplia o leque narrativo e os entrechos situam-se em subtramas: I – de Sofi/Antônio, II – Cléo/Firmim (Jorge Antônio Guerrerro Martínez). A primeira é cheia de mistérios, mentiras, fragilização da família; a segunda nas saídas de Cleo e Adela com seus namorados. A tímida e inexperiente jovem do interior do México e sua relação com o agressivo e atlético Firmin, lutador de kung-fu. Então Cleo e Sofi irão entender o quanto elas pouco significam para os homens com os quais se envolveram até aquele contraditório momento de suas vidas.

Filme é um painel dos conflitos sócio-políticos

Toda a fachada de Antonio é construída entre uma suposta viagem ao exterior e outra para suas pesquisas. Enquanto Sofi equilibra a relação deles indo passear com os filhos no campo e na praia. Não menos enrascada fica a inexperiente Cleo ao cair na armadilha de Fermin. O curto e ríspido diálogo entre eles num campo de terra, onde lutadores de kung fu se exercitam, revela o caráter do jovem especialista em Artes Marciais. Receosa, ele lhe revela: “É que eu estou grávida”, ao que ele responde rispidamente: “E eu com isso”. A partir daí ela depende apenas de Sofi.

Enquanto encadeia estes entrechos, Cuarón vai abrindo o leque narrativo, incluindo outros personagens e estruturadas subtramas. A ponto de este “Roma” se tornar um painel sobre os conflitos político-sociais do México durante o governo Luis Echeverria Alvares (1970/1976). A brutal repressão policial e os confrontos entre seus apoiadores e os movimentos pelas liberdades democráticas terminam por ocupar ruas e avenidas. E Cléo, as crianças, Sofi e Tereza acabam acuadas na calçada. Numa dessas sequências, Cleo e a idosa entram em pânico ao ver o reacionário Fermin disparar junto delas contra um apoiador de Alvares (17/01/1922).

O sentido histórico dado por Cuarón a seu filme diz muito sobre sua visão de que mesmo os cidadãos comuns terminam sendo influenciados pela luta entre as classes no poder e os que a eles se opõem para defender seus direitos à Liberdade. Em várias sequências, ele mescla o aberto confronto político-social com as dores e impasses de Cleo e Sofi. Principalmente da jovem empregada a valer-se da patroa e a idosa Tereza para receber a assistência à sua gravidez sem ter os meios e a clareza sobre o que de fato enfrenta e como superar todas as dificuldades.

Sofi largou a carreira para cuidar dos filhos

É a trabalhadora às voltas com as consequências provocadas pelo aproveitador Firmin. Para ele, Cleo não passa de um corpo do qual pode obter prazer. Não menos chocante é modo como Antonio comporta-se com Sofi e seus quatro filhos. Tanto um quanto o outro se transformam em predadores que após obterem prazer com suas presas despreza-as, simplesmente. Há lições, contudo, nestes atos cruéis. Se Cleo amadureceu com as dores e as feridas a custar a fechar, Sofi pôde ver tudo como libertação para si mesma e os filhos. E pode, enfim, sustentar a si mesma.
Por feliz coincidência, o cineasta sueco Björn Runge aborda tema semelhante em “A Esposa”. É a mulher Joan (Glenn Clouse) a dedicar sua vida inteira a construir a reputação de escritor do companheiro Joe Castlemem (Jonathan Price). Mas este ao final não reconhece ser ela a autora dos aclamados livros dele. Com Soff não é diferente, ela largou a carreira de química para casar com Antonio e cuidar dos filhos do casal, e este simplesmente ignora atitude tão digna. Porém, ao invés de prejudica-la, ele termina por libertá-la do casulo em que foi enfiada por anos a fio.

Com Cleo o desfecho é de fazer o espectador se agarrar à poltrona do cinema para não xingar o violento Fermin. São sequências de duplo suspense nas quais Cuarón não usa a costumeira montagem alternada para manter a tensão. Recorre à dualidade apenas ao manter o foco da câmera próximo às duas camas postas em paralelo no quarto do hospital. Deste modo a mãe pode ver os médicos obstetras se esforçarem para salvar sua criança. A agonia e a aflição dela são de estarrecer o mais frio espectador, porquanto só ali diante do impasse ela entendeu o que é ser mãe.

Só a liberação da mulher supera o patriarcalismo

Por certo, Cuarón estudou cada detalhe que externasse suas construções dramáticas centradas em sua juventude no bairro México na capital mexicana para obter o exato resultado. E se utiliza do claro escuro em suas elaboradas imagens como diretor de fotografia. Não menos apavorante é a sequência na qual Cleo e Sofi relaxam na praia com as crianças. E por alguma ousadia e destemor de dois deles, a jovem empregada viu-se diante de uma tragédia. Aqui são as altas e ameaçadoras ondas e a forma de filmar e montá-las que dão a impressão de que nada mais existe a fazer se não torcer por um milagre.

O enfoque aqui é outro. Cleo e Sofi ao serem escorraçadas por seus namorado e companheiro tornaram mães-heroínas. É uma forma de Cuarón mostrar que a mulher não é dependente do homem a ponto de não encontrar uma forma de viver sem ele. Aqui é bom retomar à frase inicial deste texto. ”Digam o que disserem; nós mulheres estamos sempre sozinhas”. Não se trata de um axioma para satisfazer os machistas que as consideram frágeis e incapazes. Trata-se de construção milenar e patriarcal que a só a liberação da mulher, a conscientização do homem e a evolução sócio-político-econômica do Planeta irão superar a contento.

Roma (Roma). EUA/México. Drama familiar. 2018. 135 minutos.
Montagem/Fotografia/Roteiro/Direção: Alfonso Cuarón. Elenco: Valitza Aparício, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Daniela Demesa, Marco Graf, Nancy Garcia, Verônica Garcia, Jorge Antônio Guerrero. (*) Vencedor do Oscar 2019: direção e fotografia e Melhor filme estrangeiro, sob o absoluto controle de Alfonso Cuarón.

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