Imprevistos acontecem

A vida é uma viagem cheia de surpresas: entre desafios e reviravoltas, o bom humor é a melhor bagagem

Estação das Docas, Belém | Foto: 360 meridianos

Teve uma vida agitada. Professor e gestor público. Sempre com muitas demandas. Viagens era sua rotina. Aviões e hotéis duas, três e, às vezes, quatro ao mês. Conheceu o Brasil em seus rincões e alguns países do exterior. Ver pessoas o motivava.

Chegou a aposentadoria. A vida mudou radicalmente. Uma cadeira do papai e muitos livros. Raros encontros com amigos. A cerveja e o rum no bar, pretextos para falar e encontrar gente.

Dois convites lhe marcaram. Feliz de ser lembrado. Tudo o que queria, sem dúvida oportunidades estratégicas. Não podia desperdiçar, não podia faltar. Idealizou esses momentos. Planejou detalhes.

Abertura de um encontro no interior. Faria a palestra inicial. Preparou com muito carinho. As leituras lhe ajudaram, temas do momento seriam tratados. Encontraria velhos conhecidos e alunos com quem trabalhara. Mas, era para a juventude, para os novos pretendentes a profissionais na área. Uma noite que lhe daria vida, que o traria, de novo, ao ambiente acadêmico.

Um velho aluno o conduz. Papo animado. Lembrando antigas passagens, lembrando velhos professores e antigos conhecidos.

Chega com hora e meia de antecedência. Deixam-no no hotel. Bom para se refrescar, bom para rever anotações. Tem uma hora livre para o que quiser.

Com tempo, se apronta. A indumentária despojada para a fala. Mas, alinhada. Sem o formalismo de reuniões profissionais, mas com o devido respeito que o público merecia.

Pega o elevador para descer. Está escrito que no mezanino tem uma piscina. A curiosidade o leva para lá.

Escurece cedo. A noite já caiu. Pouca iluminação e o céu de dia de chuva. A primeira vista não encontra a piscina. Uma longa varanda com um corredor preto. Deve ser do outro lado. Vai procurar distraído.

Ao pisar no solo negro descobre que não é piso, mas lona que cobre a piscina. Sem nenhum aviso aparente.

Tenta se equilibrar, mas é impossível. Afunda com a lona que amortece o ritmo. Consegue salvar o celular. Mas, a única roupa que havia levado se empapa toda. Virou peixe momentaneamente. Um verdadeiro desastre.

Tenta se enxugar e corre para um shopping ao lado do hotel. Compra camisa, calça, cueca e meias. Mas, o sapato não teve jeito, teve que usar enxarcado.

A palestra foi um sucesso, o trauma absorvido, problema era o “shuep, shuep” que fazia ao pisar e o borrifar de líquido que ficou saindo.

Todo ano freqüentava. A reunião anual era o momento mágico para quem trabalhava com políticas públicas da área. Em julho sempre ocorre. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência iria promover sua septuagésima sexta reunião. Foi convidado para participar de uma mesa concorrida.

Feliz se prepara. Passaria três dias. Belém é uma cidade mágica. Rever amigos, debater temas polêmicos, escutar os avanços mais recentes, algo imperdível.

Em sua programação, dois dias seriam para o evento. O último para o turismo cultural. Ninguém é de ferro. E assim tentou fazer.

Os dias corriam bem. Encontrou muitos conhecidos que não via faz anos. Participou de debates, falou com autoridades, reviu discípulos. Sua mesa trouxe contribuições para melhorias. Participantes que tinham pleno conhecimento do tema.

Chegou o terceiro dia. Toma um café bem cedo. E sai para sua jornada. Consciente de que pouco estaria aberto, mas não queria perder um minuto.

Passa na Estação das Docas, no Ver o Peso, na feira de artesanato. Compra lembranças para a casa, para não chegar de mãos vazias, sem nada para os netos queridos.

O Complexo Feliz Lusitânia é especial. Pela arquitetura, pelos museus que lá estão localizados. O Forte e a história da cidade, foi lá que tudo começou. As igrejas na sua imponência.

São oito da manhã e tudo fechado. Ficou admirando e resolve falar com um vigia. De um museu que não abriria por haver evento com Ministros do G20.

Simpático, o guarda explica tudo, as origens, o atual, o restaurante das doze janelas, o melhor da cidade, segundo ele.

No chão uns doze cachorros. Sendo de rua, não me atrevo a chamar de matilha. Pareciam também escutar. O locutor se empolga em suas explanações.

Um cachorro observa atento. A batata da perna do turista inadvertido. Num momento, sem muita explicação, da um bote e a morde com gosto. “Nhoc”, é bem certeiro. O sangue começa jorrar.

O vigia e uma colega o acodem. Tentam estancar o jorro vermelho. Mas a mordida foi profunda. Necessário recorrer à profissional.

Retorna ao hotel e pede ajuda. Já se aproxima das dez. O gerente muito solícito.  Providencia o curativo. Atrás da famosa anti-rábica, a próxima etapa.

O hospital do Plano de Saúde não tem, o Posto de Saúde Municipal, também não. Uma Unidade de Pronto Atendimento tem, mas é preciso o cartão do SUS. Infelizmente nada se resolve. A tarde já se faz presente. E o avião sairá no seu final. Acalmam-no dizendo que teria 72 horas para iniciar a vacinação.

Conformado se dirige ao aeroporto. Pouco teve o que fazer. Seu dia de turismo foi emocionante, poderá contar para muitos amigos. Mas, foi diferente do planejado. A vacina, oito doses terá que tomar, sem poder muito reclamar.

Planejamento não é execução, imprevistos acontecem e têm que ser vividos. O bom humor é o único consolo.

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