Sob a Máscara Negra: risos, beijos roubados e a nostalgia de outros carnavais

Zé Kéti, a “voz do morro”, foi traído por parceiros musicais, mas seu samba permanece ao expressar a saudade e o espírito dos antigos carnavais

Em 2020, o Salgueiro fez uma homenagem ao primeiro palhaço negro Benjamin de Oliveira. Raphael David| Riotur

O Carnaval é um palco de paradoxos. Nele, as máscaras revelam mais do que escondem, as lágrimas se dissolvem no ritmo das marchinhas, e a história às vezes repete suas piadas mais cruéis. Em 1967, enquanto o Brasil se embalava no êxtase de Máscara Negra, Zé Kéti, o poeta dos morros, via sua obra ser envolvida num turbilhão de ironias — a mesma que eternizou o lirismo das ruas em versos como “Arlequim está chorando pelo amor da Colombina” tornou-se alvo de acusações que ecoavam um passado amargo: o de um jovem sambista traído por aqueles que um dia chamou de parceiros.

No crepúsculo de um Rio de Janeiro que já não é mais o mesmo, ressoa o som inconfundível de um samba que transcende o tempo ao expressar com tanto lirismo a nostalgia dos carnavais antigos. Zé Kéti foi, e continua a ser, essa voz que ecoa das vielas, dos morros e dos corações que se reúnem para ouvir a verdade cantada com sentimento.

Do morro ao asfalto: a voz que nunca se calou
Nascido José Flores de Jesus, Zé Keti aprendeu cedo a escutar o sussurro das vielas. Nos bailes da mãe, gafieira adepta, descobriu que o samba era mais que música — era a crônica de um povo. Enquanto o mundo se embrenhava no rock e nas batidas de Bill Haley, Zé Kéti sintonizava o pulsar do morro. Ele ouvia o desabafo daqueles que, nas madrugadas frias, desciam as escadarias para enfrentar o asfalto e a labuta diária. Foi nessa escuta atenta que nasceu “A Voz do Morro”, gravada em 1955, que se transformou num hino – um retrato sincero do orgulho e da resistência dos sambistas, daqueles que, invisíveis à sociedade, cantavam suas dores e amores com intensidade.

Com A Voz do Morro, ele se tornou ícone: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo”, ecoava como um manifesto de resistência, gravado na trilha do filme Rio 40 Graus e no imaginário nacional. 

Antes da glória, porém, veio a cicatriz. Nos cafés do Rio, onde compositores e caetitus — lobos em pele de cordeiro — se misturavam, Zé Kéti viu um samba seu ser roubado. AF Silva, um desses personagens sombrios, apropriou-se de sua criação, lançando-a como própria na voz de Elenir Costa. “Esse samba é tuberculoso”, dizia Silva, menosprezando a obra que mais tarde usurpou. O golpe marcou o jovem compositor, que dormiu em bancos de estação, mas não abandonou a caneta.

Aos anos 1960, quando o teatro e a música se encontravam no efervescente Teatro de Arena, Zé Kéti participava do espetáculo “Opinião”, ao lado de nomes que logo viriam a se tornar lendas, como Nara Leão e João do Vale. Essa fusão de ritmos, palavras e protestos elevava o samba a um patamar de crítica social e beleza lírica, onde cada verso parecia revelar um pedaço da alma brasileira.

Máscara Negra: o carnaval da nostalgia
Na década de 1960, o Rio de Janeiro era um mosaico de contrastes, onde as luzes dos bailes de máscaras se misturavam às sombras das ruas. Foi nesse cenário encantado que Zé Kéti, inspirado pelo burburinho dos encontros e desencontros, pegou um lápis num bar da Rua Uruguaiana e rabiscou, num ato quase secreto, os versos que viriam a ser a segunda parte de “Máscara Negra”. 

Em seu jeito quieto – ou melhor, “Quetinho”, como os amigos o chamavam –, ele desnudava a alma do sambista: o que era para ser um grito de carnaval transformava-se, também, num sussurro de resistência e melancolia.

Zé Kéti subverteu o triângulo amoroso da commedia dell’arte que envolvia Arlequim, Pierrô e Colombina

Inspirado nos bailes de máscaras europeus e no triângulo amoroso da commedia dellarte, subverteu a tradição: em sua letra, Arlequim — sempre astuto e irônico — chorava por Colombina, enquanto Pierrô a abraçava sob o disfarce da máscara negra. “A música é minha, eu faço o Arlequim chorar se quiser”, respondeu aos críticos, que o acusaram de ignorar o folclore teatral.

No clássico original, Pierrô, o sonhador melancólico e de alma sofrida, nutre um amor profundo e idealizado por Colombina, cuja beleza e graça o encantam. Em contraponto, Arlequim, o travesso e irreverente, compete com sua paixão vibrante, ousada e cheia de energia. Colombina, objeto dos dois amores, oscila entre os encantos do romantismo triste de Pierrô e o dinamismo apaixonado de Arlequim, criando um equilíbrio instável entre ternura e rivalidade. No samba, é o atrevido e malicioso Arlequim quem chora ao final.

“Quanto riso, oh, quanta alegria!” ecoa na rua, enquanto a cidade se transforma num cenário onde os sonhos se misturam ao batuque e ao deslizar das máscaras. É carnaval, e a multidão – mais de mil palhaços, dizem os versos – se rende à festa. Nessa tapeçaria de cores e risos, cada rosto se esconde, cada olhar se insinua em segredo. Em meio ao riso solto e à dança desvairada, os olhos do Arlequim brilhavam como quem insiste em contar segredos de um amor proibido, ou talvez de um amor que se refaz a cada carnaval.

“Tá fazendo um ano” – assim dizia o verso, como se o tempo se medisse em carnavais passados, em festas que deixaram marcas profundas na memória. O carnaval, com sua magia efêmera, é o grande palco onde os reencontros se tornam promessas de um futuro refeito a cada ano, onde a dor da separação se dissolve na batida contagiante dos tambores. 

O carnaval é, afinal, essa festa de paradoxos: onde o riso e a lágrima se encontram, onde o efêmero se eterniza em versos e onde cada máscara é, ao mesmo tempo, um escudo e uma revelação. “Não me leve a mal, hoje é carnaval” – um lembrete de que, por algumas horas, podemos ser verdadeiros, sem receio das máscaras que usamos. Porque, nesse instante de pura magia, o amor se faz presente, e a saudade se transforma num abraço apertado, num beijo roubado na confusão do salão.

A melodia contagiante e a letra que mesclava alegria e melancolia se espalharam como fogo em palha, incendiando os carnavais de salão e conquistando o Brasil. Ao mesmo tempo em que a canção se transformava em um clássico, surgiam nuvens de controvérsia – acusações de plágio, disputas de autoria, rumores que vinham como críticas afiadas dos bastidores da MPB.

A melancolia da marcha-rancho, gravada por Dalva de Oliveira em 1966, conquistou o país. Mas o sucesso trouxe um enredo digno de suas letras. Ao incluir Hildebrando Pereira Matos como parceiro — um “lobista” da Sbacem que “poderia abrir portas” —, Zé Kéti inadvertidamente plantou a semente da discórdia. Com a morte repentina de Hildebrando, ainda em 1966, a viúva de Deusdedith Pereira Mattos, irmão do parceiro, acusou-o de roubar a música do falecido e entregar a Zé Keti. 

Os sambistas Nelson Cavaquinho, Cartola, Zé Keti e Elton Medeiros, que integravam o grupo Voz do Morro

Os holofotes da imprensa, ávidos por escândalos, não poupavam críticas nem insinuações – jornais estamparam suspeitas, críticos como Tinhorão o desafiaram na TV, e até o valor dos direitos autorais (500 mil cruzeiros) virou fofoca nas colunas de Ibrahim Sued. E, assim, Zé Kéti via-se envolto em uma teia de acusações que só aumentava o mistério e o fascínio em torno de “Máscara Negra”.

O sambista e as sombras
Enquanto advogados travavam batalhas judiciais, Zé Kéti via o passado repetir-se como um verso maldito. Assim como outrora fora vítima dos caetitus, agora era acusado de plágio. A ironia não lhe escapou: “Roubaram-me quando era desconhecido; agora, querem roubar até minha honra”, lamentou, em entrevistas esquecidas.

Mas o Carnaval, mestre em transformar dor em festa, teve a última palavra. Máscara Negra sobreviveu às polêmicas, tornando-se hino de gerações. Até a General Electric a adotou, batizando um modelo de TV com seu nome — e Zé Kéti, em frente às câmeras, sorria como quem venceu a batalha.

A máscara que virou rosto
Hoje, ao ecoar os acordes de “Máscara Negra” nas festas e nos carnavais, o lirismo de Zé Kéti permanece imortal. No compasso do carnaval, a dor e a alegria, o roubo e a reivindicação se fundem, criando uma obra-prima onde a beleza está justamente na imperfeição – e na irreverência de quem, mesmo acusado de roubo, jamais deixa de roubar uns minutos dos nossos carnavais.

Zé Kéti partiu em 1999, mas sua obra permanece como o Pierrô de seus versos: abraça o Brasil mesmo quando a quarta-feira de cinzas revela a realidade nua. Se Máscara Negra foi um carnaval de contradições — entre lágrimas de Arlequim e risos de ironia —, ela também prova que, no samba, a verdade sempre dança por último. 

Assim, entre o riso solto e a melodia que embala os passos, o carnaval segue sua dança, eterno e inconstante. E enquanto os palhaços, os Arlequins, os Pierrôs e as Colombinas se encontram e se separam, a cidade inteira se torna poesia – uma crônica viva escrita com a tinta da paixão e do efêmero, que nos lembra que, acima de tudo, a vida é feita de encontros e de momentos roubados, que se eternizam na memória, como um samba que nunca se esquece.

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