A comunicação como Soft Power: o calcanhar de Aquiles do governo Lula

A esquerda ainda trata a comunicação como algo secundário, um apêndice operacional, quando deveria enxergá-la como uma frente estratégica de disputa simbólica e política

Lula | Foto: Ricardo Stuckert

É frustrante observar, mais uma vez, um governo de esquerda tropeçar naquilo que deveria ser uma de suas maiores forças: a comunicação. A recente demissão de uma secretária da pasta comandada por Anielle Franco, alegando falhas graves na comunicação do governo Lula, não é um ponto fora da curva. É um sintoma recorrente de um problema estrutural. A esquerda brasileira — em especial quando no poder — ainda trata a comunicação como algo secundário, um apêndice operacional, quando deveria enxergá-la como uma frente estratégica de disputa simbólica e política. Em outras palavras: como um instrumento de soft power.

Antes de entrar nas sugestões, vale parar e olhar o cenário. A secretária, ao se desligar da equipe ministerial, citou diretamente a incapacidade do governo de comunicar suas ações e intenções. Ela não é a primeira a fazer esse diagnóstico. Figuras de dentro e fora da gestão já expressaram desconforto com a desorganização, a falta de clareza e, mais grave ainda, a ausência de propósito na comunicação institucional.

O governo Lula, no seu terceiro mandato, voltou ao Planalto com desafios imensos. A extrema direita ganhou musculatura e se apropriou das redes sociais como trincheiras ideológicas. A linguagem mudou, os códigos mudaram. E o governo, ao que tudo indica, segue preso a uma lógica de comunicação de vinte anos atrás — vertical, burocrática e pouco permeável ao novo ecossistema digital. Como se ainda vivêssemos em tempos de pronunciamento em cadeia nacional e coletiva de imprensa como ápice do discurso.

Mas o mundo mudou. A política, mais do que nunca, se faz também pelo imaginário. E o imaginário hoje circula em alta velocidade pelas redes sociais, nos memes, nas narrativas audiovisuais, nos podcasts e nos vídeos curtos. Quem não compreende isso está condenado a falar sozinho. E é isso que tem acontecido. O governo fala, mas não reverbera. Fala, mas não engaja. Fala, mas não emociona.

Isso não quer dizer que a gestão federal não tenha o que comunicar. Pelo contrário. Há políticas importantes sendo implementadas, avanços em áreas como meio ambiente, saúde e educação. Mas há uma enorme distância entre fazer e fazer saber. Entre realizar e conquistar o reconhecimento político e social pelo que foi feito. E aí entra o papel central da comunicação como ferramenta de soft power — uma das mais poderosas formas de influência nos tempos atuais.

O conceito de soft power, cunhado pelo cientista político Joseph Nye, se refere à capacidade de um país ou governo influenciar outros por meio da atração e da persuasão, e não da força ou da coerção. Trata-se de moldar preferências, de conquistar legitimidade e apoio por meio de valores, cultura, políticas públicas e, claro, comunicação eficaz. Em um país como o Brasil, onde o hard power (militar, econômico) é limitado, o soft power é um trunfo valioso — mas cronicamente subutilizado, sobretudo pelos governos progressistas.

Um exemplo clássico é o uso da cultura como ponte de influência. O Brasil já teve momentos de brilho nesse campo — pensemos na força da música brasileira no exterior, no cinema nacional premiado, na diplomacia cultural que levou projetos como a Capoeira e a Língua Portuguesa para os quatro cantos do mundo. Mas internamente, mesmo essa dimensão simbólica é mal aproveitada. O governo não comunica seus valores com clareza. Fala de “reconstrução do país”, mas não explica a que país quer chegar. Usa palavras como “justiça social” e “inclusão”, mas não traduz isso em narrativas acessíveis e inspiradoras para o cidadão comum.

Além disso, a comunicação institucional sofre de outro mal: a fragmentação. Cada ministério, cada secretaria, cada núcleo do governo fala uma língua própria, sem alinhamento estratégico. O resultado é uma cacofonia que confunde mais do que informa. Falta uma espinha dorsal narrativa que una os pontos e transforme ações dispersas em um projeto coerente de país.

E aqui cabe um parêntese importante. Não se trata de defender propaganda ufanista ou manipulação da opinião pública. A boa comunicação não é aquela que ilude, mas a que revela com clareza, empatia e inteligência. Comunicar bem é respeitar o público. É se fazer entender. É disputar a atenção e o afeto das pessoas com honestidade e consistência.

Para avançar nesse campo, é preciso que o governo Lula encare a comunicação como uma prioridade política — não como um setor auxiliar. Isso exige decisões estratégicas, investimentos robustos e, principalmente, vontade de ouvir quem entende do assunto. A comunicação governamental precisa ser digitalizada, descentralizada, plural e conectada com a linguagem do tempo presente.

O que isso significa, na prática?

Primeiro: profissionalizar de verdade as equipes de comunicação. Não basta ter jornalistas competentes nas assessorias. É preciso reunir especialistas em redes sociais, designers, roteiristas, estrategistas de conteúdo, analistas de dados, criadores digitais. Comunicação de governo hoje se faz com multidisciplinaridade. Não é só pauta, nota e release.

Segundo: pensar a comunicação como construção de comunidade. As redes sociais não são vitrines, são arenas de conversa. Um post institucional que não responde comentários, que não escuta críticas, que não provoca reflexão, é só um cartaz digital. A lógica atual exige escuta ativa, presença constante, e sobretudo, capacidade de dialogar com os afetos — não apenas com os fatos.

Terceiro: construir uma narrativa. A pergunta é: o que move esse governo? Qual é o sonho que ele quer compartilhar com a sociedade? Qual é o projeto de país que ele propõe? A ausência dessa narrativa faz com que cada política isolada pareça um fato pontual, e não parte de algo maior. A direita tem narrativa — ainda que baseada em mitos ou distorções. A esquerda precisa recuperar sua capacidade de contar histórias que inspirem.

Quarto: investir em comunicação territorializada. O Brasil é múltiplo. Não adianta repetir a mesma mensagem em todos os cantos. A linguagem de um jovem da periferia de São Paulo não é a mesma de um agricultor familiar do interior do Ceará. A comunicação precisa ter versões, sotaques, faces diversas. Precisa ser feita também “de baixo pra cima”.

Quinto: trabalhar com influenciadores, comunicadores populares, líderes comunitários. O governo não pode falar apenas com as grandes mídias ou via canais oficiais. Tem que se infiltrar nas redes orgânicas da sociedade. Quem forma opinião hoje não está só nas redações, mas nos stories, nas lives, nos grupos de WhatsApp.

Sexto: combater a desinformação com inteligência e agilidade. O bolsonarismo não criou fake news, mas aperfeiçoou seu uso. Ignorá-las ou responder com atraso é suicídio político. O governo precisa de núcleos dedicados exclusivamente à resposta rápida, com linguagem acessível e, de preferência, com bom humor. A verdade pode ser chata ou pode ser irresistível. É uma escolha.

Sétimo: reconectar-se com a emoção. A política não se vence apenas com dados e relatórios. Ganha-se corações com sensibilidade. E isso vale, inclusive, para as pautas mais duras. Segurança pública, combate à fome, saúde mental — tudo isso pode e deve ser comunicado com humanidade. A empatia não pode ser monopolizada pela direita.

Por fim, é preciso humildade. Reconhecer que há falhas. Que a comunicação do governo Lula precisa mudar. Não basta ter boas intenções ou um histórico de lutas. A batalha de hoje é simbólica. É sobre sentido, pertencimento, projeto de futuro. Se o governo não aprender a se comunicar com o Brasil real, corre o risco de falar sozinho enquanto o país ouve outras vozes — mais barulhentas, mais ágeis, mais sedutoras.

A comunicação, quando bem feita, não é propaganda. É política de Estado. É instrumento de transformação. É forma de poder — e, neste caso, soft power. O poder de atrair, de convencer, de criar laços duradouros entre um projeto político e seu povo. Quando um governo abre mão disso, entrega de bandeja à oposição não só o discurso, mas a imaginação coletiva.

Chegou a hora de virar esse jogo. Não se trata apenas de se defender dos ataques, mas de pautar o debate público. De ocupar os espaços com coragem, inteligência e criatividade. De contar, com firmeza e beleza, qual é a ideia de Brasil que estamos construindo.

Porque quem não conta sua história, corre o risco de ser apagado dela.

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