Senhor Milagre: em busca da vida
Escrita por Tom King com arte de Mitch Gerads, Senhor Milagre conta a história de Scott Free, um integrante dos Novos Deuses, criado por Jack Kirby em 1971
Por Felipe Moura*
Publicado 19/04/2025 11:58 | Editado 19/04/2025 12:36

Que armadilha poderia prender o homem que consegue escapar de qualquer prisão possível? Talvez o canto mais obscuro de sua mente seja esse lugar.
Escrita por Tom King com arte de Mitch Gerads, Senhor Milagre conta a história de Scott Free, um integrante dos Novos Deuses, criado por Jack Kirby em 1971. Envolvendo batalhas cósmicas entre Nova Gênesis, governada pelo Pai Celestial, e Apokolips, governada por Darkseid, a história de Tom King nos mostra uma pegada totalmente diferente, focando no estilo de vida de Scott Free e sua esposa, Big Barda.
O casal que vive como celebridades na Terra divide seu dia entre a rotina casual e a guerra estelar entre o bem e o mal. A calmaria se aflige com a tentativa de suicídio de Scott no início da história, enquanto King espertamente faz um contraste na situação com uma narração digna de um quadrinho de super herói dos anos 60 e 70 no começo e término de cada edição. Envolvendo temas sérios e importantes como depressão, insanidade, guerra e família, a história nos mostra como a mente de um indivíduo pode ser alterada para não deixar tudo ir embora e o que é preciso sacrificar para proteger aqueles que amamos.

Nascido em Nova Gêneses e entregue ainda muito pequeno para Darkseid, Scott viveu uma infância de tortura e de escuridão até fugir com Big Barda, sua atual esposa, mas ele vê que existe algo de errado no mundo — “Eu vejo coisas… eu faço coisas… coisas que… eu não sei como escapar disso! Eu não consigo escapar disso” — apenas sendo o mundo que ele habita depois da sua tentativa de suicídio; pequenos detalhes como a cor dos olhos de Barda não serem como Scott lembra até grandes detalhes como a constante guerra que acontece no espaço, são fatos que não deveriam ser assim segundo ele.
Mas o que nós nos perguntamos é se o mundo realmente está errado ou isso é a mente do Senhor Milagre ainda sem reparos? E em qualquer uma das opções, será que existe escapatória disso?
Ao longo da série vemos o quanto vai ficando pessoal a jornada do Senhor Milagre em meio a guerra, não só lutando pela paz no espaço mas pela sua família, mostrando que sua depressão afeta não só ele mas aqueles ao seu redor.
King nos mostra apenas o resultado de um distúrbio pós-traumático de anos de luta e abuso físico e mental nos poços de Apokolips. As figuras mostradas para mover a trama que se encontram ao Senhor Milagre nada mais é do que uma metáfora para o Universo DC que vemos durante anos, com seu reboots e constantes idas e vindas com lutas do bem contra o mal e sua interminável batalha para manter a ordem, mesmo sendo errado ou certa do jeito que é.
A conclusão disso é mostrada em um diálogo onde uma personagem fala sobre pássaros confundirem quadros com uvas — “para os pássaros não é arte, é apenas o que é. E o que é melhor do que ser?”.

A narrativa de King se mescla com a de Mitch Gerads em um ponto específico: seu grid de nove quadros por página que percorre todas as 12 edições (sendo mudando em apenas seis páginas durante a história). O Grid de nove quadros ficou famoso a partir de 1986 na graphic novel Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, no entanto é elevado ao máximo no nível de aproveitamento, com suas falas curtas, repetições de arte e pausas desconfortáveis para quem se encontra na situação. Usadas frequentemente em seus roteiros. A junção desse tipo de roteiro com a arte de Gerads forma uma narrativa com um time dramático e eficaz. Sem falar do aspecto gráfico, com os nove quadros do mesmo tamanho fica fácil perder o mesmo tempo em cada um deles dando a devida importância para cada um, podendo notar a mínima alteração entre eles. Sendo muito libertador para o artista, não tendo que se preocupar em como o leitor pode ler isso, com esse grid ele já sabe como vai ler.
Brincando com o tempo e mostrando mudanças de local, como o fundo da página ser preto quando estão em Apokolips e branco na Terra, e adaptando o tom em que se encontra a história.
Brincando com as cores e a arte final, Gerads pode mostrar sentimentos e emoções sem mesmo estar escritas na página e quando é mostrado uma imagem grande com quadros ligados e construindo, a página se transforma em uma gaiola, uma armadilha. Um detalhe pertinente na narrativa da dupla é aplicado em quadros totalmente pretos com a frase “Darkseid é” nos preparando para algo grandioso que está por vir e com a quantidade de quadros desse tipo aumentando na página causando uma sensação de claustrofobia, apenas refletindo o que o personagem sente, seu poder resulta o que sua vida se torna. Jogando na cara do leitor o que realmente Darkseid é, com um fundo obscuro e a simples sentença de que ele apenas é. Escuridão.
Darkseid é.

O mundo pode não ser o que nós conhecemos algum dia, mas é o mundo em que você terá que aceitar para conseguir paz e alegria com aqueles que ama. Porque a escuridão e o mal podem não ir embora nunca, mas não precisa ficar no caminho da felicidade.
*Felipe Moura é escritor e, desde 2017, faz quadrinhos, um fascinado pela narrativa gráfica ao longo dos anos. Criador do selo Splash Page junto com o escritor Eurico Santos para buscar acesso ao público com obras independentes de maneira eficaz e profissional. Escreve histórias dos mais diversos gêneros, que vão do terror ao infantil e do gore à comédia, o importante é escrever, no seu ponto de vista. Seu mais recente lançamento é a graphic novel “Vermelho como a Neve”, em conjunto com Fê Soares, que será lançada em maio de 2025 pela Editora Quadriculando.