A romantização da marginalização e os limites da consciência identitária

Quando o sofrimento vira estética e a resistência se esgota no orgulho identitário, o risco é naturalizar a desigualdade em vez de enfrentá-la com transformação real.

Imagem: istockphoto.com

“Sou preto, sou favelado, com muito orgulho.” A frase circula amplamente nas redes, estampada em camisetas, grafites e discursos performáticos que clamam por visibilidade. Em um país como o Brasil, fundado sobre a escravidão, a desigualdade e o racismo estrutural, é compreensível — e legítimo — que sujeitos historicamente violentados afirmem sua existência com altivez. O orgulho, nesse contexto, é antes de tudo resistência. Porém, é necessário perguntar: basta resistir? Devemos nos contentar em afirmar com orgulho aquilo que nos foi imposto por uma estrutura social excludente e violenta?

A crítica que faço aqui não se dirige às pessoas que, desde os territórios marginalizados, constroem sua dignidade dia após dia. Essa dignidade, conquistada a duras penas, merece todo o nosso reconhecimento. O que está em questão é outra coisa: é o uso político e ideológico dessas afirmações identitárias por um discurso que transforma sofrimento em estética, marginalização em marca e dor em orgulho. Um discurso que, ao invés de transformar a realidade, a naturaliza.

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Em uma sociedade capitalista, patriarcal e racista, a reprodução da desigualdade exige não apenas exploração econômica, mas também legitimação simbólica. Nesse sentido, o sistema é hábil em capturar as expressões de resistência e transformá-las em mercadoria, esvaziando seu conteúdo revolucionário. Quando o orgulho de ser “preto e favelado” é transformado em produto cultural sem crítica às condições materiais que estruturam o racismo e a favela, o que temos é a substituição da luta concreta pela celebração simbólica da exclusão.

Essa é a armadilha do identitarismo capturado pela lógica neoliberal: deslocar a luta para o campo do reconhecimento individual ou cultural, enquanto mantém intactas as estruturas que produzem a opressão. Como alerta Gramsci, a hegemonia não se sustenta apenas pela força, mas pela construção de consensos — inclusive dentro das lutas sociais. Um consenso perigoso tem sido o de que afirmar a identidade já seria, por si só, emancipador. Não é.

Newton Duarte, ao retomar a tradição marxista em diálogo com a educação, aponta a importância de não separar a luta contra a opressão das condições materiais que a engendram. A consciência crítica, que se pretende emancipatória, precisa ir além do imediato e do empírico. Precisa compreender o mundo para transformá-lo. Nesse sentido, o orgulho de ser quem se é não pode substituir o projeto coletivo de superação daquilo que nos condena a esse lugar.

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Não se trata de negar as identidades construídas na luta, mas de recusar sua fetichização. O orgulho de ser preto e favelado pode ser um ponto de partida, mas jamais pode ser o ponto de chegada. A favela não é destino, é expressão da violência urbana e da segregação social. A negritude não é uma essência, é uma identidade histórica construída na resistência à escravidão, ao colonialismo e ao racismo. Mas é também uma condição que, no capitalismo, está diretamente relacionada à classe, à exploração do trabalho, à exclusão do saber e ao genocídio da juventude negra. Como bem demonstrou Florestan Fernandes, o racismo à brasileira está entranhado nas estruturas do Estado e da economia, e não pode ser combatido apenas com afirmações subjetivas.

Falo a partir de um lugar concreto: sou mulher negra, nascida e criada na Zona Leste de São Paulo, no Itaim Paulista. A periferia me formou, mas não como destino inevitável — e sim como ponto de partida para a luta. Fiz graduação, fiz mestrado, tornei-me professora e coordenadora pedagógica, sempre em escolas públicas, enfrentando as contradições do sistema por dentro dele. Mesmo com diplomas e currículo, sigo sendo lida, muitas vezes, com desconfiança. Ainda ouço que “não tenho cara de mestrado”, ainda me deparo com o racismo velado das reuniões e dos corredores. O preconceito muda de forma, mas permanece. A ascensão individual, tão celebrada pelos discursos meritocráticos, não rompe com as estruturas — apenas mascara sua permanência. Por isso, nunca fiz da minha trajetória um troféu pessoal. Ela é prova viva de que a educação pública pode ser ferramenta de emancipação, mas só será plenamente libertadora se for coletiva, crítica e orientada para a transformação radical da sociedade.

E é aqui que entra a escola. A escola pública não está fora dessa disputa. Ao contrário, é nela que se reproduzem — muitas vezes sem intenção consciente — os discursos que transformam sofrimento em identidade. Quando se aplaude a criança preta que “tem orgulho de morar na quebrada” sem discutir por que a quebrada é o único lugar possível para ela, está se reforçando a lógica da exclusão como destino. Quando os currículos ignoram a história da luta de classes e substituem o debate estrutural por projetos temáticos de “consciência”, “valores” e “autoestima”, a escola deixa de ser espaço de conhecimento e passa a ser aparelho de adaptação à desigualdade. Por isso, é dever de toda educadora e educador que se pretendem comprometidos com a justiça social não apenas acolher a identidade, mas desafiar a estrutura que a produz como forma de opressão. Isso exige teoria, exige método, exige coragem política.

É nesse sentido que afirmo: é preciso exigir que o orgulho de ser oprimido seja superado por um projeto emancipador que lute por uma sociedade onde ninguém precise ter “orgulho de sofrer”, mas sim condições de viver com dignidade plena. A dignidade verdadeira não é a que resiste à margem, mas a que conquista o centro do processo histórico. E isso só será possível com luta coletiva, organização política e enfrentamento radical às estruturas que produzem, simultaneamente, a exploração econômica e a opressão racial. A classe trabalhadora, especialmente a sua maioria negra, periférica e superexplorada, deve ser reconhecida como sujeito histórico da transformação — e não como identidade abstrata, mas como força concreta em movimento.

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Temos orgulho da luta, sim — mas da luta concreta por transformação radical, não da dor transformada em emblema. A dor não é identidade, é imposição histórica. A favela, o extermínio, a superexploração da população negra não são motivo de orgulho, mas expressão brutal do racismo estrutural articulado à lógica de classe. Uma luta antirracista verdadeiramente revolucionária não celebra a marginalização — combate-a. Não estetiza o sofrimento — denuncia sua causa. Não naturaliza a favela — organiza a sua superação. E essa superação só será possível com um projeto coletivo de emancipação que enfrente, de maneira direta e inegociável, as bases materiais da desigualdade racial e de classe que estruturam o Brasil.

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