Paulo Freire, a conciliação teórica da esquerda e a capitulação diante do neoliberalismo
Texto critica a apropriação superficial de Paulo Freire pela esquerda e denuncia como sua pedagogia descolada da luta de classes serve ao projeto neoliberal de educação.
Publicado 24/06/2025 13:38

Nos últimos anos, tornou-se quase um ritual nas redes sociais, nas formações pedagógicas e até mesmo nos materiais institucionais de secretarias de educação: a repetição de frases de Paulo Freire como se fossem sentenças revolucionárias, universais e inquestionáveis. Expressões como “Educação transforma o mundo”, “Ensinar não é transferir conhecimento” ou “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam em comunhão” circulam em formatos de post, banner, slides de formação docente e até campanhas publicitárias de bancos.
O que mais chama atenção, porém, é quando militantes de esquerda, muitos deles declaradamente marxistas, começam a incorporar esse repertório sem qualquer mediação teórica. Este artigo parte desse incômodo: por que a esquerda, que se diz materialista e dialética, tem feito uso de slogans descolados de análise concreta da realidade social? O que está em jogo quando Paulo Freire se transforma num autor de frases de efeito, consumíveis tanto por progressistas quanto por neoliberais?
O fenômeno recente de transformação de Paulo Freire em um autor de frases prontas e slogans motivacionais é mais do que um modismo pedagógico. Trata-se de uma expressão daquilo que Newton Duarte identifica como fetichização do conhecimento, processo em que o saber perde sua historicidade, sua complexidade e sua dimensão crítica, sendo reduzido a uma mercadoria simbólica facilmente consumível. Essa sloganização cumpre uma função ideológica importante: esvazia o conflito de classes, descola a educação de suas determinações históricas e oferece ao campo educacional uma aparência de radicalidade que, na prática, é inofensiva ao status quo. Como alerta Newton Duarte, o processo de fetichização cria uma falsa consciência sobre o papel da educação, transformando categorias pedagógicas em fetiches ideológicos que mascaram as relações sociais concretas.
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Essa lógica de esvaziamento teórico tem se agravado nas últimas décadas, mas ganha contornos ainda mais preocupantes no ambiente das redes sociais digitais. A repetição acrítica de frases de Paulo Freire virou também uma moeda de troca simbólica na busca por engajamento. Likes, curtidas e compartilhamentos passaram a ser o novo termômetro da “radicalidade pedagógica”, enquanto o debate de fundo sobre as determinações materiais da educação é deixado de lado. Esse fenômeno, ao transformar ideias complexas em postagens de fácil circulação, reforça a lógica da mercadoria também no campo da produção e circulação de discursos educacionais. O que deveria ser espaço de formação teórica e política vira performance pública de afetos e frases de impacto, um tipo de “pedagogia para viralizar”, que na prática neutraliza o debate de fundo sobre a luta de classes e a centralidade da verdade na educação.
Ao reduzir o pensamento pedagógico a frases de impacto emocional, essa prática alimenta a lógica do espetáculo nas redes sociais e nas políticas de formação docente, substituindo o rigor teórico por uma estética da esperança, da escuta e da empatia, que se ajusta perfeitamente às diretrizes neoliberais de subjetivação da responsabilidade social.
A reprodução acrítica das frases de Paulo Freire revela, em sua raiz, um problema teórico mais profundo: a hegemonia do idealismo pedagógico no campo da educação brasileira. Esse idealismo, como aponta Saviani, consiste na tendência de tratar a educação como uma esfera autônoma, governada por vontades individuais, intenções subjetivas e valores morais, desconsiderando suas determinações materiais, históricas e sociais.
Gramsci, ao analisar o papel da escola, foi incisivo: a educação é sempre uma relação entre estrutura e superestrutura, e a escola, como aparelho ideológico do Estado, é um dos campos onde a luta de classes se manifesta. Mas essa luta não se dá no terreno da consciência ingênua ou da esperança moral, mas na disputa pelo acesso aos instrumentos científicos e culturais que permitam à classe trabalhadora compreender a totalidade social. Não por acaso, Gramsci também nos alertou para o papel central da construção do consenso como instrumento de dominação. A circulação massiva de frases soltas de Paulo Freire, descontextualizadas de qualquer análise de totalidade, opera justamente nesse terreno: produz um consenso difuso, emocionalizado e idealista sobre o papel da escola, sobre a função do professor e sobre a própria ideia de transformação social, reforçando a hegemonia de um projeto que, na prática, atua para desmobilizar a luta política e esvaziar o conteúdo crítico da educação pública.
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Ao negar a centralidade da escolha dos conteúdos, ao insistir na falsa neutralidade curricular e ao priorizar o “como ensinar” em detrimento do “o quê ensinar”, o idealismo pedagógico nega o direito ao conhecimento objetivo e histórico. Essa recusa do conteúdo é, na prática, uma recusa da verdade. Um relativismo epistemológico que alimenta a ideia de que “não existe verdade”, de que “tudo é uma construção”, e que, portanto, não haveria conhecimento mais válido do que outro. Uma armadilha que desarma politicamente os trabalhadores e naturaliza as desigualdades de classe.
Esse esvaziamento teórico não é neutro nem inofensivo. As frases de Paulo Freire, quando descoladas de uma análise materialista, passam a ser perfeitamente funcionais ao projeto neoliberal de educação. Hoje, instituições como o Banco Mundial, a Unesco, a Fundação Lemann, o Instituto Unibanco e a Fundação Itaú Social incorporam expressões freireanas em suas campanhas de formação docente e nas diretrizes das reformas educacionais.
Frases como “Ensinar não é transferir conhecimento”, “O professor deve ser um mediador” ou “O aluno é protagonista de sua aprendizagem” aparecem lado a lado com os princípios da pedagogia das competências, com o foco nas “habilidades socioemocionais”, na “resiliência”, no “espírito empreendedor” e na “adaptação ao mercado de trabalho”. O discurso da “autonomia”, da “esperança” e do “protagonismo” se ajusta à lógica da responsabilização individual e da negação das determinações materiais da aprendizagem. Como alerta Newton Duarte, essa captura do discurso freireano pelo neoliberalismo não é um desvio ocasional, mas uma consequência lógica do caráter idealista da pedagogia do diálogo.
Talvez o exemplo mais explícito dessa captura seja a frase-slogan “A educação transforma o mundo”. Embora não seja originalmente de Paulo Freire, essa expressão virou um mantra no campo educacional brasileiro e internacional. A questão central aqui é que não é a educação, isoladamente, que transforma o mundo, mas a luta política, a ação coletiva da classe trabalhadora e a transformação das condições materiais da produção. Reforçar a ideia de que basta educar para transformar o mundo é alimentar uma ilusão perigosa, que desloca a transformação social do campo da luta de classes para o campo da consciência individual. Essa é, talvez, uma das maiores armadilhas ideológicas do discurso freireano, especialmente em tempos de avanço da ultradireita.
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A escolha de Paulo Freire como Patrono da Educação Brasileira, oficializada pela Lei 12.612/2012, não é uma decisão neutra nem resultado apenas de seu reconhecimento como educador progressista. Trata-se de uma escolha profundamente política, que expressa uma combinação de interesses conjunturais e estruturais. Do ponto de vista da história recente da educação brasileira, a consagração de Freire como Patrono ocorreu num contexto de avanço das políticas de conciliação entre Estado e capital, sob uma lógica de reformas educacionais neoliberais com verniz progressista. Era o período em que o Estado brasileiro buscava equilibrar a ampliação de políticas compensatórias com a manutenção dos princípios de ajuste fiscal, controle de desempenho e focalização da educação pública.
A pedagogia freireana, com seu vocabulário centrado em “esperança”, “diálogo”, “consciência crítica” e “autonomia”, se mostrou perfeitamente funcional ao projeto de construção de um consenso social que pudesse dar legitimidade a essas reformas sem questionar a estrutura de classe da sociedade capitalista. Além disso, a escolha de Freire atende à demanda de setores da burocracia internacional e das fundações privadas que atuam na educação brasileira, interessadas em manter um discurso educacional de “transformação” que não afronte os interesses do capital. O fato de Freire ser citado por organismos como a Unesco, o Banco Mundial e até por universidades norte-americanas como Harvard não é sinal de sua radicalidade revolucionária, mas sim de sua capacidade de fornecer um discurso crítico domesticável, palatável e conciliador.
Ao ser transformado em Patrono, Paulo Freire foi institucionalizado como símbolo oficial da educação brasileira, num processo de neutralização de seu potencial crítico (ainda que limitado). Essa consagração oficial facilita sua apropriação tanto pela esquerda quanto pela direita liberal, esvaziando ainda mais qualquer possibilidade de leitura materialista e classista de seu legado. Portanto, compreender por que Freire foi escolhido como Patrono da Educação Brasileira não é um exercício biográfico ou moral, mas uma análise das determinações históricas e políticas que fazem de seu legado uma peça-chave na construção de uma hegemonia educacional de baixa densidade teórica e alta carga moralista, perfeitamente funcional ao neoliberalismo.
Para enfrentar esse cenário, é fundamental recuperar o legado de teóricos que conceberam a educação a partir do materialismo histórico. Tanto Vygotsky quanto Krupskaya defenderam que a escola tem como função histórica a socialização dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos produzidos pela humanidade, rompendo com o espontaneísmo e o psicologismo. Krupskaya, ao refletir sobre a educação soviética, foi categórica: a escola deve formar sujeitos politicamente conscientes e intelectualmente preparados para a luta social. Essa perspectiva rompe tanto com o freireanismo da “conscientização espontânea”, quanto com o construtivismo da “aprendizagem ativa” que hoje domina as políticas públicas.
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A negação da centralidade do conteúdo, seja pelo freireanismo, seja pelo construtivismo, não é uma escolha pedagógica neutra: é uma decisão política que atende aos interesses da classe dominante, negando à classe trabalhadora o direito ao conhecimento.
É justamente aqui que reside o aspecto mais grave desta discussão: a traição teórica que setores da esquerda vêm cometendo ao abandonar o método materialista histórico-dialético em favor de um humanismo idealista e conciliatório. O próprio Paulo Freire, em diversas oportunidades, declarou-se não marxista, assumindo seu lugar como um educador progressista, defensor da democracia formal e do diálogo ético. Sua pedagogia, fortemente influenciada por Hegel, pela fenomenologia existencialista e pelo personalismo cristão, constrói-se a partir de categorias como “consciência”, “diálogo” e “esperança”, mas sem a centralidade da luta de classes, da objetividade das condições materiais e da ruptura com a ordem capitalista.
Essa conciliação teórica tem levado setores da esquerda a uma prática pedagógica confusa, misturando frases de Freire, princípios construtivistas, teorias das competências e, muitas vezes, reproduzindo, ainda que de forma inconsciente, a ideologia educacional do capital. Como afirma Saviani, não é possível construir uma pedagogia emancipadora sem método. E o único método capaz de articular, de forma coerente, teoria e prática na luta contra a ordem burguesa é o materialismo histórico-dialético.
É preciso reconhecer: o que está em jogo neste debate não é um ataque a Paulo Freire como indivíduo, nem uma negação de sua importância histórica como educador progressista. O que está em disputa é a nossa capacidade de manter a coerência teórica e política diante da ofensiva neoliberal e neofascista que avança sobre a escola pública.
Não temos ilusão na pedagogia do diálogo. Não temos ilusão numa pedagogia da conciliação. Não é com metáforas e slogans de esperança que vamos derrotar o projeto de destruição da educação pública. O nosso compromisso é com a verdade, com a socialização do conhecimento científico, com a luta de classes e com a construção de uma escola pública que forme sujeitos históricos capazes de compreender e transformar a realidade material.
Sabemos que esse debate é difícil, que questionar Paulo Freire gera resistência até entre camaradas de luta. Mas é uma tarefa urgente e inadiável. Seguir evitando essa crítica é fortalecer, ainda que indiretamente, o projeto do capital.
A luta de classes também se dá no terreno das ideias. E nós escolhemos o lado da ciência, do método, da verdade e da organização política da classe trabalhadora.