Entre justiça e arrecadação
O uso distorcido da pena de multa escancara um sistema que cobra dos pobres para sustentar a máquina, em nome de uma justiça que não se cumpre.
Publicado 25/06/2025 17:08

A pena de multa, prevista nos artigos 49 a 52 do Código Penal, é uma sanção de natureza pecuniária que deveria exercer função retributiva e preventiva, atuando como alternativa à privação de liberdade. No entanto, a forma como tem sido aplicada e executada nos últimos anos evidencia uma distorção funcional preocupante: a conversão da multa penal em mecanismo de política arrecadatória. Essa inflexão se tornou ainda mais visível após a promulgação da Lei nº 13.964/2019, o chamado “pacote anticrime”, que ampliou a capacidade do Ministério Público de promover a execução judicial das multas diretamente nas varas criminais, sem necessidade de encaminhamento à Fazenda Pública.
Em São Paulo, por exemplo, os dados demonstram um aumento substancial no número de execuções fiscais de penas de multa. Entre 1996 e 2019, foram pouco mais de 6 mil execuções. Apenas entre 2019 e março de 2023, esse número saltou para mais de 208 mil. A grande maioria dessas cobranças — mais de 60% — envolve valores inferiores a dois mil reais. O custo médio estimado para processar uma execução judicial é de nove mil reais, o que estabelece uma contradição: um esforço financeiro e institucional desproporcional frente ao retorno arrecadatório.
É possível enxergar um componente social nesse procedimento arrecadatório, uma vez que a pena de multa impacta desigualmente a população brasileira, já que a maioria dos condenados penalmente são pobres, sem renda, onde a população negra é majoritária — e muitas vezes não tem condições de pagar as multas impostas. A inadimplência promove a inclusão na dívida ativa, proporcionando a restrição de crédito, perda de benefícios e reincidência em outras formas de exclusão institucional. Dessa forma a multa penal, em vez de atuar como uma sanção alternativa ao cárcere, mantém a marginalização daqueles que ela deveria, em tese, resgatar para a vida social.
Esse cenário se conecta diretamente à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o sistema prisional brasileiro como um “estado de coisas inconstitucional”. No contexto da ADPF, o Plano “Pena Justa”, deve orientar um novo entendimento na aplicação das penas multas, e também na execução, estabelecendo um compromisso com a dignidade da pessoa humana e a racionalização da execução penal.
A instrumentalização da multa penal como mecanismo de arrecadação, especialmente contra populações vulnerabilizadas, perpetua as distorções denunciadas na ADPF 347. Assim, a política de cobrança massiva de multas sem consideração pela capacidade contributiva do condenado torna-se mais um vetor de aprofundamento das desigualdades denunciadas no sistema prisional brasileiro.
A pena de multa não pode ser instrumento de exclusão ou uma engrenagem de arrecadação fiscal disfarçada de justiça penal. Sua execução deve levar em conta a capacidade econômica do condenado, sua função pedagógica e a necessidade de respeitar os princípios da dignidade da pessoa humana e da equidade racial e social.
Essa reflexão é urgente, não apenas para resgatar a coerência normativa do ordenamento jurídico, mas para reafirmar o compromisso do sistema penal com os direitos humanos. Se a multa penal se tornou mais uma forma de controle social sobre os corpos negros e pobres, é porque o sistema se afastou de seus fundamentos constitucionais. Resta agora o desafio de reconduzi-lo ao seu eixo: a promoção da justiça, e não da receita.