Risco de 14 milhões de mortes expõe efeito de cortes de Trump na ajuda internacional

Estudo publicado na revista The Lancet alerta que decisão dos EUA ameaça reverter duas décadas de avanços em saúde global e pode matar mais crianças que a 1ª Guerra Mundial

Ajuda humanitária da Usaid evita milhões de mortes por fome e doenças por todo o mundo, como em territórios em conflito armado Foto: Abel Gichuru Organization: Action Against Hunger – Kenya Country Office

A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de cortar mais de 80% do financiamento da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) poderá causar mais de 14 milhões de mortes adicionais até 2030, incluindo 4,5 milhões de crianças com menos de cinco anos, segundo estudo publicado nesta segunda-feira (30) na revista científica The Lancet.

A medida, anunciada oficialmente em março pelo secretário de Estado, Marco Rubio, levou à suspensão de milhares de programas de assistência humanitária em mais de 60 países — com efeitos já visíveis em locais como campos de refugiados no Quênia, onde rações de alimentos foram reduzidas ao menor nível já registrado.

“Esse é um choque comparável, em escala, a uma pandemia global ou a um grande conflito armado”, afirmou Davide Rasella, pesquisador do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal) e um dos autores do estudo.

Mortes (todas as idades) evitadas pela implementação da USAID como uma porcentagem do total durante o período de estudo de 2001 a 2021

Estudo revela austeridade letal e reversão de conquistas

A pesquisa foi liderada por especialistas do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em parceria com instituições internacionais como ISGlobal e Universidade da Califórnia. Os cientistas analisaram dados de 133 países entre 2001 e 2021 e concluíram que os investimentos da USAID foram responsáveis por evitar mais de 91 milhões de mortes — das quais 30 milhões eram crianças.

Entre as áreas mais afetadas pelos cortes estão HIV, malária, doenças tropicais negligenciadas, desnutrição infantil, diarreia, tuberculose e mortalidade materna.

“Essas mortes seriam evitáveis, caso os programas fossem mantidos. A suspensão abrupta compromete duas décadas de progresso”, afirma Caterina Monti, também pesquisadora do ISGlobal.

Trump, Musk e o desmonte ideológico da cooperação internacional

Washington/EUA – 12/02/2025 – Presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva orientando todas as agências federais a trabalharem com a equipe de Elon Musk para erradicar o “desperdício”, como investimentos em ajuda humanitária a refugiados de conflitos armados. Foto: RS/Fotos Públicas

Desde que voltou à Casa Branca no início de 2025, Trump colocou em marcha um plano de austeridade radical, liderado por um conselho de bilionários do setor privado, entre eles Elon Musk, com a meta de reduzir o “tamanho do Estado” e eliminar o que classificam como “gastos ideológicos”.

A USAID, maior agência governamental de ajuda humanitária do planeta, que representa apenas 0,3% do orçamento federal dos EUA, foi acusada por Trump e seus aliados de apoiar projetos “progressistas” no exterior e de desperdiçar recursos.

“Nossa intenção é transferir a gestão dos programas restantes ao Departamento de Estado, com supervisão do Congresso, para garantir mais eficiência e menos politização”, declarou Rubio. Dos mais de 5 mil programas ativos, apenas mil permaneceram de pé.

ONU alerta para fome em massa e mortes silenciosas

Na prática, os efeitos dos cortes já são visíveis. Relatos da BBC em campos de refugiados no Quênia descrevem crianças com sinais de desnutrição grave, como pele enrugada e descamando, enquanto trabalhadores da ONU denunciam uma situação de fome silenciosa que avança sem alarde.

“Centenas de milhares de pessoas estão morrendo lentamente”, disse um funcionário da ONU que atua em Kakuma, no Quênia.

A redução do financiamento americano levou outros países doadores, como Alemanha, Reino Unido e França, a seguir pelo mesmo caminho, agravando o cenário de colapso.

Comparações históricas: tragédia evitável maior que guerras e pandemias

Os pesquisadores chamam atenção para a magnitude da tragédia humanitária projetada. Os 14 milhões de mortes até 2030, caso os cortes persistam, superam os 10 milhões de mortos da Primeira Guerra Mundial e dobram as estimativas da pandemia de covid-19, que matou pouco mais de 7 milhões até hoje, segundo a OMS.

“Essa não é uma tragédia inevitável. É uma decisão política, baseada em ideologia e desinformação”, afirma James Macinko, da Universidade da Califórnia.

O pesquisador também enfatizou o baixo custo per capita dos investimentos:

“Cidadãos americanos contribuem cerca de 17 centavos de dólar por dia à USAID. É difícil acreditar que alguém, ao saber disso, aceitaria cortar um programa tão eficiente e vital.”

Conferência da ONU em Sevilha: apelo por reverter os cortes

A divulgação do estudo ocorreu durante a maior conferência da ONU sobre ajuda internacional em uma década, realizada nesta semana em Sevilha, na Espanha. Líderes globais alertaram para a necessidade urgente de restabelecer o financiamento e salvar milhões de vidas, com foco em crianças, refugiados, mulheres grávidas e populações de zonas de conflito.

Representantes da sociedade civil e agências multilaterais apelaram para que o Congresso dos EUA reverta os cortes ainda este ano. “A história cobrará caro dos que ficarem em silêncio diante dessa catástrofe anunciada”, disse uma representante da UNICEF.

O futuro da cooperação internacional em xeque

A ofensiva do governo Trump contra a USAID é parte de uma visão que desacredita o multilateralismo, reduz a cooperação Sul-Norte e promove o isolacionismo. Especialistas alertam que, além das mortes diretas, o desmonte da ajuda internacional compromete o combate a futuras pandemias, o enfrentamento das mudanças climáticas e os próprios interesses geoestratégicos dos Estados Unidos.

“Ajudar não é caridade. É estabilidade. E estabilidade global sempre foi um ativo da diplomacia americana”, resume Rasella.

O mundo assiste, em tempo real, à desintegração de um dos pilares da saúde global. E, segundo os pesquisadores, ainda é possível reverter esse rumo — mas o tempo está se esgotando.

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