Mais de 300 mortos em 48h em Gaza em meio às negociações de cessar-fogo

Palestinos são alvejados em fila por comida; exército de Israel e seguranças dos EUA disparam contra civis enquanto proposta de trégua segue sem garantias concretas

Palestinos se aglomeram em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, na tentativa de receber alimentos em meio ao cerco militar e aos ataques israelenses. Foto: Reprodução

A ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza resultou em mais de 300 mortos em apenas 48 horas, segundo a Autoridade Palestina, que denunciou a realização de “26 massacres sangrentos” neste curto período.

O número de vítimas inclui ao menos 33 palestinos assassinados enquanto aguardavam comida em centros da Fundação Humanitária de Gaza (GHF, em inglês), estrutura criada com apoio dos Estados Unidos e do próprio governo israelense. Só nas últimas 24 horas, os ataques deixaram 118 mortos e 581 feridos, de acordo com o ministério da Saúde de Gaza.

Os bombardeios atingiram mercados populares, abrigos superlotados, áreas residenciais e centros de distribuição de alimentos. Um dos ataques mais letais ocorreu em Al-Mawasi, no sul do enclave, onde 13 pessoas foram mortas em uma tenda para deslocados internos.

Outro ataque atingiu a Escola Mustafa Hafez, no oeste da Cidade de Gaza, matando 16 pessoas e ferindo dezenas. “Acordamos com bombardeios tão intensos que pareciam um terremoto. As vítimas ficaram queimando por horas sem que ninguém pudesse socorrê-las”, relatou Ahmed Mansour, um dos sobreviventes.

A escalada ocorre em plena retomada das negociações de cessar-fogo. O presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou nesta terça que Israel havia aceitado as “condições necessárias” para uma trégua de 60 dias.

No entanto, até agora, o governo de Benjamin Netanyahu evita confirmar publicamente qualquer compromisso com o fim da guerra. Em vez disso, o primeiro-ministro reafirmou sua promessa de eliminar completamente o Hamas.

Execuções a céu aberto: tiros contra famintos em centros de ajuda

Testemunhos recolhidos por jornalistas e organizações humanitárias descrevem uma realidade brutal nas filas por comida nos centros da GHF. Conforme a Al Jazeera, civis famintos esperam por horas diante dos portões, apenas para serem recebidos com rajadas de metralhadora.

“Não houve aviso prévio. Apenas tiros rompendo a multidão. Pessoas desesperadas corriam em todas as direções enquanto as balas voavam”, disse o repórter Tareq Abu Azzoum, em Deir al-Balah.

Reportagem da Associated Press revelou que seguranças norte-americanos contratados pela GHF utilizaram munição real e granadas de efeito moral contra palestinos. Dois ex-contratados, sob anonimato, afirmaram que os agentes são mal preparados, sem supervisão e “com carta branca para agir como quiserem”. A fundação negou as acusações, mas não apresentou provas.

A mais grave denúncia veio de dentro de Israel. O jornal Haaretz publicou uma série de testemunhos de soldados e oficiais das Forças Armadas que confirmam ordens diretas para abrir fogo contra multidões desarmadas próximas aos pontos de distribuição.

Leia mais: Israel comete crime de guerra ao transformar alimentos em armas, diz ONU

Em resposta, o comando militar reconheceu que entre 30 e 40 civis foram mortos ou feridos num único bombardeio “não calculado” em Gaza. Apesar do recuo, o alto escalão do exército defendeu a continuidade da Operação Carruagem de Gideão.

O médico norueguês Mads Gilbert, com mais de 30 anos de experiência em Gaza, classificou a operação da GHF como uma farsa cruel.

“A distribuição de alimentos virou isca. Eles atraem os famintos para matá-los. Isso é terrorismo de Estado. Atirar em pessoas em filas de comida é um crime de guerra”, afirmou à Al Jazeera.

Cessar-fogo sem garantia: negociações travam enquanto bombas caem

Donald Trump declarou que a proposta em negociação é “final” e cobrou publicamente que o Hamas aceite o plano. “A situação não vai melhorar — só vai piorar”, ameaçou o presidente dos EUA em sua rede social.

A proposta, apresentada por seu enviado Steve Witkoff, prevê cessar-fogo de 60 dias com liberação parcial de reféns em troca de prisioneiros palestinos. A etapa seguinte incluiria, supostamente, o fim da guerra — mas sem qualquer garantia por escrito.

O Hamas confirmou que estuda a proposta, mas afirma que os “pontos centrais seguem sem solução”. O grupo exige um acordo que inclua cessar-fogo definitivo, retirada das tropas israelenses e garantia de socorro humanitário. “Estamos prontos para aceitar qualquer proposta que leve ao fim da guerra”, declarou Taher al-Nunu, porta-voz do grupo.

Do lado israelense, o ministro Gideon Sa’ar admitiu que há maioria no gabinete para um acordo de libertação de reféns, mas reiterou que o Hamas deve ser eliminado. Netanyahu, por sua vez, declarou que “não haverá mais Hamastão”, em referência a gerência do grupo em Gaza, e prometeu “vitória total”, em tom de desafio às negociações em curso.

Apesar da retórica, o exército anunciou novas evacuações no norte de Gaza e manteve os ataques aéreos. O embaixador israelense na ONU, Danny Danon, afirmou que Israel está “pronto para o cessar-fogo”, mas condicionou o fim da guerra à devolução dos reféns.

Fontes do Hamas relataram que os mediadores do Egito e do Catar não apresentaram uma nova proposta, mas apenas variações da já rejeitada em junho. O grupo insiste que qualquer cessar-fogo deve vir acompanhado de garantias internacionais.

Guerra sem fim: mortos passam de 57 mil e civis seguem como alvo

Desde o início da ofensiva israelense em outubro de 2023, mais de 57 mil palestinos foram mortos, aponta o Ministério da Saúde de Gaza. A maioria das vítimas são civis, incluindo milhares de mulheres e crianças.

Nesta semana, ataques israelenses mataram pelo menos 139 pessoas em 24h, segundo as autoridades sanitárias locais. Um dos alvos foi o diretor do Hospital Indonésio, Marwan Al-Sultan, assassinado com sua esposa e cinco filhos.

Apesar do rascunho de trégua, Israel segue sem retirar tropas e continua a bombardear áreas densamente povoadas. O exército alega ter atingido “alvos terroristas” e afirma lamentar mortes de “indivíduos não envolvidos”. Ainda assim, impõe restrições severas à entrada de ajuda e mantém fechados os acessos ao norte de Gaza, onde a fome é mais aguda.

A GHF, centro das denúncias internacionais, é alvo de pedidos de fechamento por parte de mais de 170 organizações humanitárias. Oxfam e Save the Children dizem que militares israelenses “rotineiramente” atiram contra civis famintos.

Israel nega, mas não permite que agências da ONU operem com independência. Segundo a UNRWA, apenas quatro “mega-centros” da GHF funcionam, todos longe das zonas mais afetadas.

Em meio ao impasse diplomático, à violência contínua e ao bloqueio humanitário, a população palestina vive sob ameaça constante. Sem garantias de cessar-fogo definitivo, sem retirada das tropas e sem socorro internacional efetivo, Gaza permanece sob cerco — enquanto o mundo negocia.

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