De colonialismo e selvageria

” A partir de fatos reais, cineasta inglês Sam Mendes mostra o quanto o homem mescla seu lado humano ao do primata em sua luta contra o outro. “

Com o olhar voltado para a condição humana, cineasta inglês Sam Mendes (01/08/1965) reconstrói os cenários da Grande Guerra (28/07/1914-11/11/191918) neste “1917)”. Sua narrativa, centrada nos cabos Lance Schofield (George MacKay) e Lance Blake (Charles Chapman) busca expor as reações do ser humano em situação-limite. É quando emerge o que de primata ele mantém em suas estruturas mentais e corporais. Ainda mais se ocorrer nos confrontos bélicos, como os que opuseram quatro grandes potências na I Guerra Mundial em plena Europa.

O fato de duas nações europeias emergentes na época, Alemanha e Hungria, desafiarem as poderosas e colonialistas Inglaterra e França, acirrou ainda mais as disputas geopolíticas. A intenção de ambas era ocupar os países africanos e asiáticos há muito sob o domínio inglês e francês. Em meio a estas disputas colonialistas foi deflagrada a guerra e sessenta milhões de pessoas morreram. Entretanto, Mendes centra sua narrativa numa disputada região onde tropas inglesas e alemãs se enfrentam. E os pontos estratégicos estão sob o controle alemão.

O espectador se vê, contudo, diante de dois jovens cabos, Schofield e Blake, cuja missão é levar mensagem que evite seus companheiros serem atacados pelos inimigos alemães. Têm, de fazê-lo em tempo recorde, mesmo tendo de percorrer quilômetros e quilômetros de trincheiras pela frente. E ainda fugirem das áreas cercadas por arame farpado, verem corpos de soldados alemães e ingleses estirados sobre a terra e terem de se proteger contra os aviões inimigos. O pior é não terem informações precisas sobre onde deverão se encontrar com quem irá ajudá-los.

Mendes mantém espectador preso ao crescente suspense

A trama estruturada por Mendes e sua co-roteirista Krysty Wilson-Cairns é torná-los dependentes dos oficiais das trincheiras que se encontram no roteiro traçado por seu comandante, general Elmore. Isto torna-os dependentes de quem não detém informação sobre aqueles que precisam encontrar em tempo recorde. Quem ganha com isto é o espectador pois se põe a torcer pelos dois cabos e se vê diante de situações que o mantêm preso ao crescente suspense. Muito mais pelos ardis montados pelos alemães a se mover de um lado ao outro da região.

O que interessa, ainda assim, é o comportamento dos cabos devido à pesada responsabilidade que têm de suportar. Estão numa corrida contra o relógio, sem ter certeza de que atingirão os objetivos fixados por Elmore. É quando Mendes individualiza-os enquanto personagens, pondo ora Schofield ora Blake em questão. Este ainda é decidido, tem mais a perder, caso os alemães terminem por cercá-los. Seu parceiro, por outro lado, só quer avançar sem enfrentar os temidos alemães. Nada o espera em casa no fim da guerra, se sobreviver até lá. Afinal é jovem e sonha com isto.

Mendes desenvolve toda a trama deste “1917” enredando o espectador em tensas situações e não fugindo ao tema central. Ou seja, a capacidade de o ser humano soltar seus demônios. E, além disso, não transforma os dois cabos em heróis. A sequência a fundir os fios dramáticos ocorre de forma simples. O avião alemão de combate surge em chamas numa fazenda, aonde acabavam de chegar. Tanto o piloto quanto Schofield e Blake se preparam para o choque. Os alemães podem, enfim, deixar de ser uma ameaça momentânea para eles deixá-los irem em frente.

Piloto do avião age como se fosse uma víbora

É nesta brilhante sequência que a dupla Mendes/Cairns leva o espectador a entender o quanto a reação do ser humano pode ser primitiva. O inimigo uma vez em apuros, na visão de Blake, deve ser socorrido. Ocorre que o alemão não pensa assim. O que se passa em seguida atesta tanto o instinto animal do piloto quanto o de Schofield. Ainda mais na guerra, onde todos soldados reagem à bala, fogo ou veneno. O piloto age como uma víbora ao reagir, Blake com boa intenção e seu parceiro com apurado instinto de quem está numa frente de guerra e não num parque.

A questão na crucial sequência sobre quem baniu o instinto de solidariedade num piscar de olhos atesta a capacidade da guerra em transformar o homem numa máquina de extermínio. Esta visão, porém, não é absoluta. A dupla Mendes/Cairns, ainda assim, não transforma este tratamento dramático num axioma, portanto verdade absoluta. Cada enfrentamento, abordagem e aproximação exigem reação ou tratamento diverso. Schofield daí para frente enfrenta os mais perigosos desafios, muitos deles mortais. Isto sem perder de vista o que o trouxe à batalha.

Não bastasse centrar a narrativa em Schofield, Mendes cria outra forma de encadear as sequências. Estas construções dramáticas ao estilo dos filmes de ação são sustentadas por perseguições aos inimigos alemães. Pelos lugares por onde passa cresce o cerco a ele. Ainda assim não perde seus objetivos, mas a cada tentativa de alcançá-los, eles se transformam numa sucessão de obstáculos tornando-os uma odisseia. Vê-se pelo enfileirar de armadilhas e escapadas do caudaloso rio em longas e bem construídas sequências. Ao realismo sucede-se a fantasia e o heroísmo.

Para mãe e filha Schofield é anjo

Mendes, além disso, está atento não só às estruturações dramáticas como ao visual deste “!917”. Da concepção de clima ao estado psicológico de Schofield ao entrar no castelo medieval. As fusões e a montagem de Lee Smith contribuem para o espectador sentir que está em atmosfera de filme de mistério. Nada ali assemelha-se ao mundo real, as bolhas azuis preenchem o espaço por onde o jovem cabo passa. Os personagens com os quais entra em contato parecem emergir dos contos de fadas. Os soldados e espiões alemães, por seu turno, não o deixam sossegado.

São nestas sequências que a narrativa ganha outro significado. Notadamente na sequência na qual Schofield encontra mãe e filha numa espécie de igreja abandonada. E é tratado amigavelmente por elas. Nada o atormenta ou ameaça naquele breve momento. Assemelha-se até ao anjo da guarda. Percorrer a imensa igreja de altas paredes, onde predomina o silêncio, mostra o quanto ele consegue interagir com os seres comuns. O que predomina nestes espaços de fuga é tão somente o vazio provocado pela guerra. Toda uma população mudou para onde se sente protegida.

Percebe-se nestas sequências o quanto os filtros e as lentes do grande diretor de fotografia, Roger Deakins (24/05/1949), fazem a diferença. Há sempre uma zona de sombras e de espaço ampliado por luzes em corredores do castelo e da igreja por onde circulam atarantados “seres noturnos”. Por ela ainda se movem os que podem impedir Schofield de atingir seus objetivos. Eles, porém, veem-se em situações que não lhes permitem atacá-lo por ver nele obstáculo para seus intentos. Porém, seu espaço continua a ser o da trincheira por onde busca atingir seus objetivos.

Para soldado terra deve ser devolvida ao povo

A exemplo das demais odisseias, a de Schofield, depois de percorrer trincheiras cobertas de cadáveres, é retomar sua busca para chegar ao seu objetivo. O modo como o faz é de quem ainda não alcançou o que se tornou sua missão no exército inglês. Sua percepção é do soldado cansado e perplexo, se não frustrado com a falsa hierarquia e o modo como o oficial subalterno ao seu comandante tratou o que valeu quase sua vida. Seu desrespeito a ele foi de vê-lo como aquele que o tornou menos confiante no que lhe parecia ser questão apenas de entregar e ser recompensado.

Nestas sequências finais, o espectador vê-se frente ao que muitas vezes passa despercebido àqueles que ignoram a capacidade dos proletários entender os interesses embutidos nas declarações das nações imperialistas. E, notadamente, sobre quem recai o peso de ser convocado para combater numa guerra que não é sua. Em seu deslocamento com os soldados do batalhão a qual pertence, Schofield escuta a conversa entre seus companheiros. Um deles questiona a própria guerra entre as nações imperialistas por não ver sentido em morrer por um pedaço de terra que pertence ao povo do país mais pobre. “É melhor devolver tudo para eles”.

Com este desfecho, Mendes eleva este “1917” a outro patamar. Não se trata apenas de um filme sobre a guerra entre países colonialistas que se sentiam ameaçados por duas emergentes nações europeias na época. A partir de suas conversas com o avô Alfred H, Mendes, de origem portuguesa, e do próprio cabo Lance, ele dá conta de seu tema. Não só questiona a própria guerra colonialista como a estende às nações imperialistas de hoje, notadamente os Estados Unidos. Portanto, a arte não é apenas diversão, pode ajudar a refletir sobre quem é a ameaça real.

1917(1917).Reino Unido/EUA. 2020.119 minutos. Música: Thomas Newman. Edição: Lee Smith. Fotografia: Roger Deakins. Roteiro: Sam Mendes/Krysty Wilson-Cairns/. Diretor: Sam Mendes.

Candidato a dez Oscar 2020: Filme, diretor, roteiro original, fotografia, trilha sonora original, Efeitos visuais, direção de arte, mixagem de som, maquiagem e penteado.

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