“A Acusada”, a construção da culpada
Em obra sobre enfermeira acusada de crime em série, cineasta holandesa Paula Van Der Oest desvenda os interesses da Justiça e das corporações.
Publicado 10/12/2015 13:57
O que dizer das estruturas de poder capitalistas que se amparam umas nas outras para defender seus interesses? Muito. Principalmente se um filme como este “A Acusada” expuser suas teias jurídicas e corporativas para desvendar ações nada éticas ou morais. Nele a cineasta Paola Van Der Oest e seus roteiristas Moniek Kramer e Tijsvan Marle estruturam o caso verídico da enfermeira Lucia de Berk (Ariane Schluter), acusada de assassinar sete bebês no Hospital Westland, de Haia, Holanda, em 2001.
Em princípio parece mais um caso de serial-killer, desta vez de bebês. Muitos deles sofriam de graves doenças, mas eram tratados pela pediatra Bárbara Kobes e assistidos pela eficiente Lucia. Não bastasse, tinha a confiança total de suas colegas. Mas, de repente, se vê acusada por elas de ser fria, solitária, insensível, ex-garota de programa na juventude. E, suprema maldade, ter assassinado várias crianças e maltratado outras. Mas, uma vez presa, é chamada pela mídia holandesa de “Anjo da Morte”.
Durante 10 anos seu caso galvanizou a atenção dos holandeses, dada a carga midiática e as manobras da Promotora-chefe Ernestine Johansson (Annet Malherbe) e do diretor do Westland, Jaap van Hoensbroeck (Barry Atsma), para mantê-la fora do hospital. Oest, no entanto, deixa o espectador em elevação estruturando a narrativa em subtramas, fios e entrechos, que dão conta do tema central: como a realidade pode ser construída em cima de interesses que só emergem acidentalmente.
Jansen constrói a culpa de Lucia
Grande parte da ação está centrada em Lúcia e na jovem promotora assistente Judith Jansen (Salle Harmsen), cujo apetite por promoção confirma seu carreirismo. Parte dela a construção da imagem de Lúcia, como psicopata. Inclusive se vale da avaliação das enfermeiras, dos livros “Traje da Morte”, “Interior do Assassino em Série” e “Ritual do Assassinato” e do diário encontrados na casa de Lúcia para apresentá-los como prova irrefutável de sua culpa. Assim, Jansen monta o processo criminal, a partir de uma tese sem qualquer sustentação real.
A própria Johansson vê que suas suspeitas de Lúcia não se confirmam. “Como provar que ela administrou o veneno. Não tem seringa, não há testemunhas, não há marcas de agulha”. Isto é indiferente para Jansen, que sossega apenas ao levar Lúcia para a estreita cela de paredes cinzas, sem colchão ou vaso sanitário. Os louros, porém, vão para Johansson, que a partir daí se apropria de seu trabalho, e para Jaap, reforçado assim perante o conselho da corporação hospitalar.
Desta forma, a aliança Promotoria/Westland se configura, como algo para além do real. Oest mostra-o ao desconstruir a “tese” de Jansen. Sua afoiteza e ingenuidade sobre as construções do poder não lhe permitiram ter a mesma visão de Johansson. Acabou sustentando o plano urdido por Jeep, para evitar que as mortes de bebês levassem ao cancelado do projeto de fusão do Westland com outro grande hospital. Em suma, ela foi inocente útil e Lúcia o bode expiatório de Jaap.
Jensen se vê manipulada
É na terceira parte que Oest inverte a narrativa – o carreirismo de Jensen esboroa e ela percebe o quanto falhou, ao ver as relações entre a Promotoria e a corporação. Sua aproximação de Lúcia, cheia de nuances, dores, culpa, leva-a a mudar de posição. É nestas sequências que Oest trabalha Lucia enquanto personagem-ficcionalizado. Deixa de ser a vítima para ser reflexiva, não reativa como antes. Ela, que surge na primeira parte cuidando do pai agonizante no hospital, torna-se agente de sua causa.
Oest mescla suas cenas na cela às de suas atribuladas relações com a mãe em sua época de garota de programa. Os flashbacks reforçam o percurso feito por ela até se tornar enfermeira. E difere do estereótipo construído por Jansen, ao anunciar a morte de seu pai e ela não chorar diante da algoz. O faz depois, sozinha, aos prantos. E se recompõe e se agita alegre ao receber a visita de Pete e Fabiene. Porém, se insurge contra Jansen e, em princípio, não a perdoa pela incriminação.
Numa brilhante estruturação cênica, Oest põe Jansen e Lúcia caladas frente a frente na sala de visita de prisão. Apenas se olham. Lúcia: “Não sei por que está aqui, mas não suporto mais você”. Jansen: “(…)Sinto muito. Eu estava enganada”. São sequências iguais a estas, as variações narrativas, o clima sombrio, opressivo, que dão dimensão ao drama de Lúcia, libertada em 14/04/2010. Depois de 6 anos, 3 meses e 19 dias condenada, com a ajuda da mídia, à prisão perpétua com trabalho forçado.
Entretanto as sequências finais do esforço de Oest e seus roteiristas para manter o suspense, não é mais que uma tentativa de obter um apoteótico desfecho, que resulta num clichê ao mostrar os holandeses de vela acesa na mão, acenando para ela. Atesta a redenção de Lúcia e Jansen, mas, por outro lado, é a confirmação da Justiça como sustentáculo das corporações, nesta etapa do capitalismo, pois nem Johansson, nem Jaap foram punidos.
A Acusada. (Lucia de b.). Drama/policial/suspense. Holanda/Suécia. 2014. 93 minutos. Música: Adam Norden. Editor: Marcel Wijninga. Fotografia: Guido van Genneo, Roteiro: Moniek Kramer/Tijsvan Marle. Elenco: Ariene Schluter, Salle Harmsen, Annet Malherbe, Fedja Van Huét, Barry Atsma.