“A Banda”: convivência possível

Filme do diretor israelense Eran Kolirin trata da convivência pacífica entre árabes e israelenses, através da história de uma banda militar egípcia que se perde em Israel e vai parar numa cidadezinha no meio do deserto, onde é recebida com hospitalidade p

À margem do conflito árabe-israelense existe um mundo de pessoas simples, cuja identidade se fixa através dos traços de uma identidade comum a qualquer povo. Ao seu redor há, além disso, outros pontos e semelhanças que se desvendam ao longo de uma convivência de fácil assimilação. Em seu filme “A Banda”, o diretor Eran Kolirin o confirma ao longo dos 90 minutos que põem lado a lado egípcios e israelenses, por meio de uma situação inusitada. A Banda da Polícia de Alexandria vem a Israel se apresentar na inauguração de uma praça na região árabe e se perde a caminho do lugarejo, indo parar numa cidadezinha no meio do deserto. Ali predomina o estranhamento, o isolamento, a falta de perspectiva, configurados nos prédios padronizados, adornados por plantas e lagos artificiais. E seus moradores parecem saídos das folhas de uma planta de engenharia, com pontos de movimento bem identificados.


 



                    



É sobre esta planta, digamos assim, que os personagens irão se deslocar, enquanto a situação kafikaniana os envolve, sem lhe dar chance de interagir, ainda que tentem fazê-lo. Pensa-se, a todo instante, que a hospitalidade termine em mais um conflito em si já milenar. Ou que num dado instante chegue à polícia e devolva os oito integrantes da banda ao aeroporto e de lá à Alexandria. Fosse assim, o israelense Eran Kolirin terminaria por atender às expectativas do espectador e transformaria seu filme num amontoado de clichês. Ele o evita através de entrechos que desmontam cada expectativa. A começar pela abertura, simplesmente atordoante, daqueles homens em farda azul claro, com seus quepes e postura militar parados na entrada do prédio do aeroporto à espera de alguém que os leve a seu local de exibição. E nada acontece.


                    



Personagens sintetizam visões das desconfianças entre os dois povos


                    


Este estranhamento do espectador e dos músicos é dado ainda pela ausência de movimento no aeroporto. Apenas um automóvel chega para pegar uma jovem e esta embarca, sem que possam com ela trocar palavra alguma. Tudo lhes é estranho, o vazio e o alheamento se impõem de uma maneira que se pensa que embarcarão de volta, dada a falta de um guia que os leve a seu destino. Eles, entretanto, ali estão não só para o concerto como para honrar as determinações de seu comando. Então, surge a figura imperial, do regente e comandante, o coronel Tewfiq (Sasson Gabai), com suas instruções, seguidas a contragosto pelo trompetista Khaled (Saleh Bakri), espécie de crítico da rigidez de Tewiq, mais interessado em conquistar as nativas que localizar o local para onde irão. O conflito entre os dois dará, a partir daí. O tom entre o velho e o novo, o moderno e o antigo, em termos culturais e comportamentais.


 



                      


Este aparente conflito simboliza, por outro lado, visões correntes das relações árabes-israelenses. Enquanto Tewiq quer, a todo custo, manter a disciplina de seus comandados, mantendo-os distantes do estreito contato com os israelenses, Khaled, pelo contrário, busca com eles se relacionar, sem se importar com as restrições. Não os vê como inimigos ou alguém a quem se deva evitar, de modo a escapar ao confronto ou mesmo ao constrangimento.  Não se pode esquecer que a banda, mesmo sendo musical, faz parte de uma corporação militar, e Tewiq, como seu regente-comandante, é obrigado a manter a situação sob controle, dadas às circunstâncias criadas pela guerra entre os dois povos. Um clima explicitado por seu comportamento e as reticências dos demais integrantes do corpo musical, cautelosos na abordagem dos poucos israelenses que encontram na desolada cidadezinha. 


          


          


Israel é enclave dos EUA e CE no Oriente Médio   
           
                     


 


Esta antevisão das hostilidades de parte a parte  mostra o quanto elas se entranharam no comportamento de dois povos que convivem no Oriente Médio ao longo de milênios e ainda não superaram suas históricas contradições. Pelo contrário, são submetidos, cada dia mais, à manipulação norte-americana e européia como parte da estratégia de manter Israel como enclave militar na região, garantindo, desta forma, o controle das reservas, exploração e distribuição de petróleo. O que é feito às custas da destruição paulatina do território e do povo palestino, da ocupação do Iraque e da desestabilização do Líbano. E, ainda que desde os Acordos de Camp David, durante o Governo Carter, haja uma relação de tolerância entre Egito e Israel, a precaução de Tewiq bem traduz os ânimos que predominam entre os dois povos. Qualquer deslize pode significar a explosão de um confronto de difícil contenção.



                       



Quando ele se antecipa aos subordinados para abordar os israelenses, o faz mais como comandante na plenitude de sua autoridade. Uma autoridade percebida pelos que o atendem; intrigados com a súbita aparição de músicos de uniforme em pleno deserto. O diálogo entre ele, Tewfiq, e Dina (Ronit Elkabetz), a dona do restaurante, é uma daquelas perólas que o cinema raramente oferece ao espectador. Eles tentam se comunicar, mas toda uma barreira histórica se estabelece. As frases, emitidas pela metade, dizem menos que os gestos, as entonações de ambos. De Tewiq para se fazer entender, sem criar qualquer desconfiança, de Dina para captar as intenções de alguém vindo de muito longe, que se encontra num país estrangeiro e, ainda por cima, distante de onde deveria realmente estar. Uma sensação que vai aumentando à medida que a situação kafikaniana se completa. Nada se encaixa.


                       


 



Dina incentiva Tewfiq a aderir à sua fantasia


                       



 


O que se segue é uma série de situações hilariantes, bizarras e, por que não, sintomáticas de dois povos que, antes de se entender, desconfia um do outro. Enquanto, Tewfiq mantém sua compostura diante de Dina, temendo se descontrair e se permitir instantes de fraqueza, Khaleb explora espaços, desvenda comportamentos e passeia pela cidade, depois de fazer amizades. Comportamentos que revelam pontos de identidade entre Tewfiq e Dina. Solitários, carentes, fechados em si, precisam se expor para manter a sanidade. Ele, centrado, o faz através da rigidez, ela por meio da descontração, das indiscretas perguntas, que o sensibiliza, beirando às confidências, para logo se reerguer, pois logo tudo aquilo será apenas memória. Espécie de realidade fugidia a ser substituída pela fantasia, quando trocam confidências em plena madrugada. Então  ela o desafia a ver para além da praça, onde se encontram. O imaginário de regente está por demais apegado a compromisso para se permitir divagar e viajar por espaços da fantasia.
                    


 


 


Por momentos, esta bela seqüência remete o espectador à cena do jovem Fellini, em “Amarcord”, encontrando Magali Noel, em meio à neve, e recordando a paixão que por ela nutria. Mas Tewfiq trás dentro de si muito de história e de dor para aceitar a charada que Dina lhe apresenta. Há uma barreira intransponível entre ambos, ainda que ele, por momentos, admita que errasse em sua relação familiar e avança mais do que ela esperava. Isto é, no entanto, tudo que ele deixa escapar. Logo regressa à sua normal rigidez. Não menos significativa é a perambulação de Khaled pelos espaços padronizados da cidadezinha. Ao contrário de Tewiq, ele está aberto ao diálogo, à amizade, não tem as reservas de seu regente. E se entende com os jovens e os incentiva há descobertas insuspeitadas para ambos. Aqui uma forma de Kolirin expor a identificação entre a geração mais jovem, despida das resistências e desconfianças milenares, e suas desconfianças da geração mais velha, configurada em Tewfiq. Eles, os jovens, não se questionam; não se distanciam um do outro, se amparam um no outro, como se disso necessitassem.


                       



Música facilita identificação entre árabes e israelenses
                       
                       


 


Percebe-se que, livre das estratégias imperialistas, da transformação de Israel em enclave militar no Oriente Médio, a convivência entre árabes, incluindo palestinos, e israelenses seria possível. A conversa entre o compositor da banda (Khalifa Natour) e o israelense desempregado que o hospeda reforça esta impressão. No quarto onde dorme o filho do casal, este último comenta a situação em que se encontra e sua relação com a mulher. Deixa o quarto e o compositor fica diante do berço onde o filho do desempregado dorme. Percebe-se, sem o recurso do flashback, que ele também tem um filho. São instantes que revelam a possibilidade da solidariedade, da amizade e da convivência pacífica entre os dois povos, ainda que a realidade o desminta a cada minuto.
                          



 


As diferenças entre ambos são deixadas de lado, quando os integrantes da banda e os moradores da cidadezinha se encontram. Vários elos os unem. Um deles a linguagem universal, traduzida pela música, que a todos fala; indo do clássico, ao jazz, passando pelo rock, como se nada mais precisasse. Algo os faz dialogar. A voz de Chet Baker, em “My Funy Valentine”, cria o clima íntimo entre Tewifq, Khaled e Dina, os acordes do concerto que o compositor produz, o faz amigo dos que o abrigam. Às vezes, esta identificação se reflete na falta de comunicação e na solidão que predomina nas várias gerações representadas no filme. À exemplo da cidadezinha em pleno deserto, todos esperam por algo para além do cotidiano. Khaled o percebe ao estar na quadra de skate. Enquanto um dos casais se diverte, outro se distancia, nem mesmo a música os aproxima. O jovem Pepi tenta escapar ao namoro com a garota por ele apaixonada; Khaled vê nisto apenas timidez, inexperiência, não uma recusa. A maneira como os faz contornar a incomunicabilidade é digna de se ver: talvez alguém a condene, outros a achem normal.


 


                             



Ganchos criados ao longo do filme não se fecham


                            


 



O importante nestes pequenos entrechos, é que os elos não se fecham. Os ganchos criados pelas situações se desmancham. As expectativas não se completam. Os encontros e as relações são tão fugazes quanto o que eles representam: uma passagem da Banda da Polícia de Alexandria pela cidadezinha, no meio do deserto israelense. Nada mais. O clima kafikaniano inicial, que se prolonga por várias seqüências também não permanece. O único dos nós a permanecer é o da manutenção da rigidez e o comportamento centrado de Tewfiq, que não se altera. Torna-se mais tolerante com Khaled, por um detalhe significativo que a ele não se submete, e entende que, afinal, o jovem músico encontrou, mesmo fugazmente, o que buscava a noite toda.  E as distâncias, porquanto a hospitalidade dos moradores as contrarie, não são tantas que não possam conviver por uma noite, com aqueles que teoricamente são seus inimigos.
                           



 


Com a “A Banda”, Kolirin foge ao relato do conflito bélico árabe-israelense, tão comum em obras de seu compatriota Amos Gitai, tornando seu filme um manifesto pela tolerância e a superação das diferenças. Mesmo que durante seus 90 minutos se tenha a impressão de que uma bomba logo explodirá. O que em nada diminui a força de sua obra, reforçada pela bela fotografia de Shai Goldman e a brilhante interpretação de Sasson Gabai, que torna o coronel-regente um personagem que trás dentro de si todo histórico do confronto entre árabes e israelenses. Um daqueles filmes que se deve assistir como lição de cinema e de exposição de relações complexas traduzidas na linguagem direta do cinema, sem exploração emocional. Kolirin quando a ação resvala para o emocional, corta para a fantasia e desta para a contradição, não deixando espaço para o espectador perder de vista que se trata de uma obra sobre o conflito árabe-israelense, ainda que em nenhum momento se faça menção a ele. Afinal, os integrantes da Banda Policial de Alexandria são egípcios.


 


 


“A Banda” (“Bikur Há-Tizmoret)”. Israel, 2007, 90 minutos. Fotografia: Shai Goldman. Roteiro/Direção: Eran Kolirin. Elenco: Sasson Gabai, Ronit Elkabetz, Saleh Bakru, Khalifa Natour.


(*) Festival de Cannes 2007: Prêmio da Crítica Internacional, Prêmio da Juventude, Prêmio Coup de Couer.


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor