“A Caça”: Instintos de primata

Cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg discute instintos primários e pedofilia em obra sobre a incapacidade do homem ver além da aparência

O cineasta dinamarquês gosta de romper o estabelecido. Em “Festa de Família” (1998), uma reunião de confraternização se torna uma tragédia. Neste “A Caça” (1912) a harmonia entre os moradores de uma pequena cidade dinamarquesa é desmontada por uma fantasia infantil. O conhecimento do outro se mostra frágil, a ponto de os instintos primários explodirem numa violência brutal. A comunidade descobre que não está imune aos atos de seus próprios integrantes. Daí a forma como reage à denúncia de que um de seus bolinou a pequena e indefesa Klara (Annika Wederkopp).

O horror se espalha, pois o professor da escola infantil, Lucas (Mads Mikkelsen), é adorado pelas crianças e é amigo dos pais de Klara, Theo (Thomas Bo Larsen) e Agnes. Fatos não ocorridos são acrescentados e o caso restrito se transforma numa ameaça geral. É o que se vê na sequências em que diretora da escola Grethe e o Psicólogo ouvem Klara sobre o supostamente acontecido entre ela e Lucas. Eles vão adicionando ações fora do acontecido e ela, acuada, vai confirmando-os, embora negue sua denúncia. Em princípio se trata de pedofilia, com todas suas implicações

Vinterberg, no entanto, trata-o com outro olhar: o de que as fantasias infantis podem engendrar armadilhas para os adultos. Pode levá-los a cometer erros e procurar proteger as crianças, a partir de suas próprias desconfianças. Se Grethe e o Psicólogo apreendessem o universo de Klara, entenderiam sua motivação. Lucas, sempre que chega à escola, algumas vezes acompanhado por ela, é recebido com alvoroço pelos garotos. As brincadeiras se repetem durante as aulas. Isso cria nela um sentimento de exclusão, de ciúme de Lucas. Daí seu gesto inusitado, a reação dele repreendendo-a e sua vingança.

Klara se sentiu excluída do grupo

Mas o suposto abuso de Klara por Lucas, é tão só o fio encontrado por Vinterberg e seu corroteirista Tobias Lindholm para analisar o comportamento humano. O relacionamento construído em anos por homens e mulheres esboroa. Deixa de ser entre seres racionais para ser entre primatas. É o grito, a indiferença, a violência, o sangue, a justiça com as próprias que dita seu comportamento. Lucas é simplesmente excluído da comunidade, banido da escola, brutalizado. O filme torna-se sombrio, cheio de nuanças doentias, entremeando sequências de bebedeiras, de caça a servos, reforçando os instintos primários, em climas ditados pelas imagens de Charlotte Bruus.

Este comportamento da comunidade assume o duplo sentido da caça, a real empreendida pelos homens a Lucas, e a simbólica refletida na caça aos servos. Tem ainda o sentido de iniciação, de rito de passagem do jovem Marcus (Lasse Fogelstrom), filho de Lucas, que ao completar dezoito anos ganha uma espingarda e o direito de participar da caça ao servo. É quando os instintos primários, selvagens, se impõem à racionalidade. Embora a argúcia de Vinterberg, o tema não é novo. Fritz Lang já o tinha abordado, em “Fúria”, mostrando a multidão enfurecida querendo linchar o suspeito de crime.

O novo aqui é a introdução da pedofilia, dos temores dos adultos diante do abuso da criança, da falta de conhecimento do universo infantil, da fragilidade das relações pessoais e comunitárias. Nada se equilibra. A racionalidade neste caso vem da polícia e da Justiça da pequena cidade que não pode se deixar levar pelas aparências, induções, mentiras. E Vinterberg foge das sequências de delegacia, de tribunais. Os policiais aparecem pouco. O que ajuda o espectador a compreender suas intenções: a falta de conhecimento que o homem tem do outro e sua incapacidade de refletir e questionar as aparências.

Lucas continua sendo a caça

O que se vê é amizade de Lucas/Theo se desmanchar, Majda, a namorada de Lucas, hesitar. E ele, que enfrenta o divórcio da companheira, tentando atrair Marcus, ter apoio apenas dele e de Buus, padrinho do filho. Não se quer dizer que a pedofilia não seja condenável em si, a prevalência do desejo por seres indefesos, de abusar da inocência e ver nisto estimulo para o ato sexual. Não é este, no entanto, o centro de “A Caça”. Existem duas perguntas: E se Lucas for inocente? E se houve motivação de Klara? Cabe ao espectador refletir sobre isto. Ela mesma lhe dará, no filme, a resposta.

No entanto, o desfecho, mostrando o retorno de Lucas à caça, dá conta da perpetuação do instinto primário, que emerge no homem quando fica diante do indefeso servo. E neste instante, ele, Lucas, se torna o servo, talvez seja esta uma das explicações para o comportamento humano nestes tempos tecnológicos: o de que, com a arma na mão, o homem é tão só um primata, mesmo rodeado por suas criações: deuses, tecnologias, sociedade, estruturas de produção, estruturas de pensar. Lucas é a caça.

“A Caça”. (“Jacter”).
Drama.
Dinamarca. 2012. 117 minutos.
Trilha sonora: Nikolaj Egelund.
Fotografia: Charlotte Bruus.
Roteiro: Thomas Vinterberg, Tobias Lindholm.
Direção: Thomas Vinterberg.
Elenco: Mads Mikkelsen, Annika Wedderkopp, Thomas Bo Larsen, Lasse Fogelstrom

(*) Festival de Cannes 2012: Mads Mikkelsen, prêmio melhor ator por “A Caça”.

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