A celebração… Ou a noite do azul
Publicado 18/08/2011 20:27
As seis colunas em volta do salão foram cobertas, de cima a baixo, de panos azuis. Para não escurecer a brancura do teto, crepons brancos, da mesma altura do tecido azul, feito ricochetes das paredes de cor igual. As cores dando conta de um conchego pernambucano, findo o perigo de esbulho de senhores de engenho e usineiros. Na frente do clube, no meio da Praça do Carmo, a cruz de pedra sobre uma pirâmide redonda, apontava um dos braços para o canavial do outro lado da ponte, nas margens do rio Goiana. Quinze dias antes, capatazes, polícias de brim cáqui e filhos de banguezeiros puseram fim ao último camponês que os ameaçara de esbulho; assim criam.
Em volta dos quatro lados do salão, todas as mesas estavam ocupadas. Num dos lados, atrás, o balcão de mármore do bar, por onde os braços dos garçons proviam-se de bebidas e comidas. Fernando Filizola trouxera a namorada, as irmãs e seu pai, o gordo senhor de engenho vestido a caráter; ou seja, brim azul dos pés aos ombros, com bolsos largos na camisa solta, na altura da cintura. No dinheiro, enfiado no bolso como numa cafua aberta, não havia quem pusesse os dedos; não sob a gravidade de seus bigodes cheios, sob o chapéu panamá branco; e sob a mesa, um par de botas marrons, com os canos cobertos pela calça.
Sinhazinha, servindo-se numa mesa ao lado, pôs-se a conversar com ele; fartando-se, frugal, num magro sanduíche de pão-de-caixa, tão fino quanto a transparência da fatia de queijo dentro. Distraía-se no décor senhorial do canavieiro, no fio grosso de cada palavra de sua boca ornada feito um brasão.
– Ainda chove na várzea. Não há perigo de um incêndio nas canas. Em setembro, com a safra, todos nós vamos nos recuperar dos prejuízos das greves.
– Graças a Deus a gente agora pode dormir em paz. – acudiu-o Sinhazinha – Perdi a moenda de meu engenho. Eles tentaram tocar fogo, mas não conseguiram por causa de meu administrador. Mesmo assim, meteram o cabo das enxadas nas engrenagens. Vou recuperar em memória de meu pai, que deixou para mim. A safra vou vender para a usina. Para mim é mais seguro.
– A usina está querendo comprar as terras de cada engenho; ela mesma quer plantar.
– Não quero vender. As almas de meu avô, de meu pai, estão naquelas terras. Agora elas vagueiam sossegadas.
As famílias de donos de terras de Goiana, todas tinham um mausoléu no cemitério; na crista de cada cripta, um par de anjos barrocos, com asas em voo, no traslado de coronéis inocentados pelo viés curvo de seus bigodes – Calheiros, Bustamante, Rabelo.
Sinhazinha, diferente de todos, tinha avós e pais enterrados num outeiro saliente ao lado da casa grande. Os velhos, de tão entranhados à terra, repetiam aos filhos, à cana curvada pelo vento na direção da varanda, a ambição de vigilância sob o rico massapé.
– Já tenho minha campa na sala, sob o retrato de minha mãe e de meu pai. Quero ser enterrada junto deles.
O velho Filizola riu, afiando a curva do bigode, entretendo a ancestralidade de Sinhazinha.
Filizola, o filho, também a caráter, com os olhos nos dois, aprovou tudo para legitimar a morte de que fora autor. Vira o sangue escorrer das entranhas de Cirino, não se assustara, experimentara a repulsa que o corpo estendido espalhara na poça pastosa de lama.
A namorada, com um laço azul enfeitando os cabelos, mostrou os dentes como um bibelô lustroso. Riu, no mesmo rito do par, para Sinhazinha, para o quase palpável sogro.
O presidente do clube, o único a vestir um terno azul escuro – visto ser a noite do azul -, acenou para a orquestra tocar. Os casais bem que podiam descer o único batente do salão, para a dança da remissão. Houve uns minutos de hesitação. A namorada de Filizola, o filho, não compreendeu; mas ele, o pai, Sinhazinha e o presidente trocaram olhares cúmplices, sufocando remorsos inconfessos. Também frei Alberto, inerte na batina marrom, creu-se inculpável.
O capitão Gouveia, novo chefe de polícia de Goiana, atravessou o salão para os cumprimentos. Seguiu-o o juiz, o promotor público. Sentado entre uma parede e outra, na juntura dos lados, frei Alberto conveio ser de bom-tom levantar-se para um rapapé murcho; livrara o rosto do pasmo morto.
Filizola, o velho, acolheu-os com a ordem ao garçom:
– Mais uma garrafa de uísque e peru assado!
Viu seu copo suar com o transbordo do gelo. Sentiu novo prazer telúrico.