A China e a “nova luta pelo socialismo” (1)

Da mesma forma como a Comuna de Paris, em 1871, demonstrou para Marx a cientificidade de sua proposta e a existência da União Soviética foi primaz no avanço das lutas nacionais e populares no século passado, a China – e sua crescente influência internacio

Seria uma grande leviandade ignorar a importância da China nesta contenda de dimensões históricas. Gostem ou não, a China encerra fator que será decisivo à nova etapa de combate entre os dois sistemas sociais antagônicos. Seu crescimento serve para quebrar o paradigma da “única via possível de se gerir economia”.  O seu portentoso e ágil Estado Nacional desmonta por si só a máxima da necessidade de um “Estado Mínimo”. E seu potencial financeiro e grandioso mercado consumidor é condição sine qua non à solução de pendentes questões nacionais, seja na América Latina, na Ásia ou na África.


 



A consolidação de modos de produção anteriores


 


A princípio, as possíveis cogitações de futuro devem se basear única e exclusivamente no campo da história. Para tanto, compreender o processo histórico da consolidação do feudalismo e do capitalismo é mister para dar início a uma elaboração de fôlego acerca do futuro do socialismo.


 


O processo de consolidação do feudalismo como modo de produção deu-se nos epílogos que levaram o escravismo romano ao seu fim. A superioridade do feudalismo foi demonstrada pelas chamadas invasões bárbaras (antes que as vejam como algo ruim). Além disso, inovações tecnológicas (arado a boi e já a pequena siderurgia) colocaram em xeque economicamente o sistema dominante que já não dava conta das crescentes necessidades materiais das populações que viviam sob sua égide.


 


Vale assinalar que o que se convencionou chamar de processo de “romanização” pode muito bem ser assimilada na contemporaneidade. Dito processo consistia na sensível melhora de vida das populações recém-incorporadas ao Império Romano e que após algum tempo, passaram a ser cada vez mais espoliadas economicamente sob o subjetivo propósito de manter em pé a superestrutura e a base material romana. Qualquer semelhança com os juros da dívida externa carreados pela periferia ao centro do sistema terá sido mera coincidência.


 


A título de exemplo, na Bíblia podem-se verificar casos de revoltas contra a crescente cobrança de impostos à periferia do sistema mundial de então (daí a César o que é de César…). No caso do imperialismo norte-americano, este processo é semelhante na medida em que o capitalismo financeiro norte-americano financiou – a partir de um novo formato de exportação de capitais (implantação de indústria em terceiros países) – a industrialização de países como o Brasil. Porém, na medida em que o modo de produção torna-se reacionário, a grande potência transforma-se em uma parasita esponja de recursos.


 


Processos de consolidação, como o do feudalismo (a partir das cruzadas européias), dão conta de processos similares. As primeiras experiências de capitalismo surgiram em cidades italianas e holandesas nos séculos 13 e 15,  porém não tiveram força de romper o cerco do feudalismo dominante. Estas experiências podem ser remontadas às primeiras experiências socialistas do século passado, pois assim como restaurações dinásticas foram comuns entre os séculos 16 e 18, restaurações capitalistas estavam na ordem natural das coisas, com a agravante de o socialismo ser uma proposta única de sociedade em que a exploração do homem pelo próprio homem – ao contrário de modos de produção anteriores -, tenderia ao fim.


 


Retornando, somente no século 17 foi rompido o cerco feudal na Inglaterra, via Revolução Puritana, criando as condições objetivas à consolidação do capitalismo como modo de produção progressista em relação ao feudalismo.


 



A consolidação pelos Estados Unidos


 


Guardo uma opinião particular a respeito da consolidação do capitalismo no mundo. Além do já exposto sobre a Inglaterra, vaticino que o processo de consolidação do território geográfico e econômico norte-americano na segunda metade do século 19 é muito elucidativo. Para este processo, para o qual Lênin apontou o dedo por mais de uma vez (1), seja demonstrando o espírito empreendedor do povo norte-americano como exemplo a ser seguido ou pela alusão ao local em que melhor se daria o casamento entre capital industrial e capital bancário, casamento este que seria a força-motriz de um poderoso processo que culminou na crescente hegemonia norte-americana no mundo pós-Primeira Guerra Mundial. E também na primazia do imperialismo na atual etapa financeira a que assistimos no capitalismo de nossos dias.


 


A construção de uma nação banhada pelos dois mais importantes oceanos com uma amplíssima gama de recursos naturais e minerais foi fator de impacto no sistema capitalista mundial. Impacto que consolidou o capitalismo como o modo de produção quase imbatível em nossos tempos e que mesmo em crise mostra-se capaz, independente da vontade de muitos, de se recompor e se reproduzir.


 


Se percebermos que, a cada cem anos (ou duas revoluções industriais), ocorre uma grande revolução no setor de transportes, teremos melhores condições de auferir o porquê de os Estados Unidos, a partir de um “berço esplêndido”, transformou-se no que vemos hoje (país interligado de norte a sul e de leste a oeste por moderníssimas malhas de ferrovias, rodovias e hidrovias que se transformaram em vantagens na luta pela hegemonia mundial). De forma planificada, escolheram Chicago como o centro dinâmico da “expansão ao oeste” e também de forma planificada mataram mais índios do que Bill matou búfalos em seu tempo. Construíram um território econômico uniforme, em que – no campo ou na cidade – a indústria se confunde com o setor primário, que por sua vez hoje não passa de um ramo cada vez mais industrial na divisão social do trabalho. Como uma potência comercial historicamente gestada, de forma religiosa, imperial, implacável, fria e desumana, pendeu para o seu lado a guerra entre capitalismo e socialismo no século 20.


 



O caso chinês, o socialismo e seu lastro histórico


 


Quais fatores poderiam ser enumerados para demonstrar a centralidade do fator China na atual etapa da transição, capitalismo-socialismo em âmbito mundial?


 


Esta questão envolve respostas das mais variadas. Porém, não podemos esquecer que para muitos a China por não ser um país socialista não joga papel nenhum. Arremessam-se em ilusões a-históricas do tipo “economia natural do socialismo” ou na constituição de um “movimento mundial anticapitalista” (Mészáros, Borón etc). Esquecem-se de que para Marx a vitória do socialismo em âmbito mundial dependeria da constituição de um centro de gravidade situado na Inglaterra, França e Alemanha. Tese esta comprovada historicamente tanto – em seu tempo – pela União Soviética quanto pela China atual (quaisquer dúvidas perguntem aos nossos amigos Fidel, Chávez ou Evo Morales do que seria das experiências que encabeçam sem a existência de um parceiro comercial e político como a China).


 


Respondendo a questão levantada no início do parágrafo, a princípio é importante elencar os seguintes aspectos: 1) a grandeza de seu território; 2) a antiguidade de sua civilização e Estado Nacional; 3) a capacidade de elaboração de um pensamento próprio (a exemplo da independência de seu processo revolucionário); 4) mediação societal por meio de filosofias civilizatórias e tolerantes; 5) o comércio como parte da vida cotidiana há cerca de 3.000 anos; 6) uma antiqüíssima e sólida economia de mercado; 7) Estado com uma antiga prática de planejamento econômico e territorial (cerca de 2.500 anos); 8) um grande e experimentado Partido Comunista no poder; 9) Partido este com uma base social larga e inquieta e 10) Uma nação ciente de seus desafios e do papel a cumprir ao futuro da humanidade.


 


Tratam-se de fatores de peso a serem tomados em conta e em cálculos futuros. Que não nos esqueçamos que praticamente nenhum dos fatores acima descritos existia para o caso soviético. Lembremo-nos que a União Soviética assentava-se num Estado Nacional (Principado de Moscou) surgido da necessidade da defesa de seu território de constantes invasões estrangeiras, logo ressentido de uma auto-estima que o tornasse capaz de enfrentar desafios como os impostos de fora para dentro pelo imperialismo; seus camponeses longe de serem empreendedores comerciais eram servos seculares. Todo um caldo de cultura para a formação de um Estado autocrático que se tornou um reino de obscurantismo em pleno início do século 20. Algo meio europeu e asiático. Autocracia que remanesceu na Rússia soviética seja pela idéia de um “papaizinho incontestável”, seja pela brutalidade de um governo onde há cerca de 700 anos a espionagem (nucleada e iniciada pela Igreja Ortodoxa e no século passado pela CHEKA e a KGB) impunha seu terror à sociedade. Tudo isso sem deixar de lado feitos de grande porte de estadistas como Pedro, o Grande, revolucionários da estatura de Lênin, Stálin e Trotsky, de feitos memoráveis como a defesa de Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial, a dianteira da corrida espacial e a explosão cultural pós-1917. O problema é que os limites desta formação social transpuseram-se suas potencialidades na medida em que os problemas internos foram se avolumando e transformando-se em problemas maiores que a capacidade de abstração de uma burocracia corrupta e ineficiente.


 


A título de exemplo fica o “diagnóstico” da década de 1980 da necessidade de uma mais larga economia de mercado na URSS, quando na verdade o nível de desenvolvimento das forças produtivas alcançados por lá exigiam novas e superiores formas de planejamento (2). Formas de planejamento que permitissem uma cada vez maior automação industrial e conseqüentemente maior margem à redução da jornada de trabalho. Evidente que reduções de jornada de trabalho não eram desejáveis à burocracia soviética dado o espaço que seria dado a uma cada vez maior autogestão da produção por parte dos trabalhadores.


 


Muito ao contrário do verificado na sociedade chinesa onde a auto-suficiência de seu povo faz-se sentir na forma aberta com que os chineses enfrentam seus problemas. Exemplo, disto é o fato de os chineses em mais de uma década de diferença (com relação à URSS) já diagnosticaram e enfrentaram os impasses surgidos da decrepitude do fordismo e dos problemas da construção do socialismo em formações sociais periféricas. Isso sem falar do destemor do enfrentamento à contra-revolução de junho de 1989, enquanto na Rússia um “picareta” sai do Comitê Central do PCUS direto para a contra-revolução aberta, extinguindo com um ato burocrático o próprio partido de Lênin. Trata-se de necessárias relações históricas à elaboração de rumos para o futuro de nosso movimento.


 


Relações históricas que servem a responder o porquê de a China estar na vanguarda do crescimento econômico mundial, pronta para nas próximas décadas desbancar (a partir da atual guerra comercial) o fascismo representado pelos Estados Unidos e demonstrar a crescente superioridade das alternativas socialistas ante a cada vez mais freqüente neurose da sociedade ocidental. É desta referência histórica e geográfica que temos de nos referenciar na “nova luta pelo socialismo” que vivemos nos dias de hoje.


 


Na próxima semana argumentarei sobre a atual consolidação do modo de produção socialista no mundo a partir da base territorial chinesa.


 



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Notas:


 


(1) Sugiro a leitura de “Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos” escrito por Lênin em 1910.


 


(2) RANGEL, I.: “O Quarto Ciclo de Kondratiev”. Revista de Economia Política, v. 10, n. 4, outubro-dezembro de 1990. Disponível em PDF em http://www.rep.org.br/pdf/40-2.pdf 


 



EM TEMPO: Estarei na semana que vem (entre os dias 20 e 22) realizando um ciclo de cinco palestras intitulado “China: Reformas Econômicas e Projeto Nacional” por alguns campi da Universidade Estácio de Sá situados nas cidades do Rio de Janeiro e Niterói. O objetivo deste ciclo é divulgar um curso de extensão universitária que leva o mesmo nome e que vai ocorrer na própria Estácio entre os dias 1°/09 e 06/10. Abaixo segue o roteiro das palestras:


 


20/8 (2ª feira), das 19h às 20h30 no Campus Centro I – Auditório III – 22º andar.


 


21/8 (3ª feira), das 10h às 11h30 no Campus Centro I-manhã – Auditório II – 9º andar;
                           das 14h às 15h30 no Campus Dorival Caymmi (Copacabana);
                           das 19h às 20h30 no Campus Niterói.



 
22/8 (4ª feira), das 10h às 11h30 no Campus Tom Jobim (Barra da Tijuca ao lado do Barrashopping).


 


Informo ainda, aos amigos de Florianópolis interessados em debater com este colunista, que estarei ministrando duas aulas sobre a China ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geociências da UFSC. As aulas serão na parte da manhã nos dias 23 e 24 deste mês.

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