“A Concepção”: Brasília sob suspeita

Boa surpresa, filme do diretor brasiliense, José Eduardo Belmonte, levanta questões sobre a falta de perspectiva da juventude da Capital Federal

Numa época de filmes rasos, em que é preciso escolher os que valem a pena ser vistos, “A Concepção”, do diretor brasiliense José Eduardo Belmonte, é um convite à reflexão sobre o que deve ser o cinema brasileiro. Um cinema instigante, em que a linguagem estimula a busca de sentido ou um cinema linear, pronto para atender às necessidades do mercado? Primeiro é necessário estilhaçar a idéia de que “filme de arte” não é filme de mercado. Não o é se for considerado o padrão hollywoodiano, voltado principalmente para o entretenimento, mas termina sendo quando for destinado ao segmento de público interessado em obras complexas, que abordem temas que contribuam para a compreensão dos problemas da atualidade, em seus mais diversos aspectos. Desta forma, como já dizia (Jean Luc) Goddard, todo filme é comercial. Portanto, esta é uma velha história ainda não de todo resolvida, pois a classificação do que é ou não um filme comercial continua a pautar as discussões nos meios intelectuais e cinematográficos.

Deste ponto de vista, “A Concepção” veio contribuir para a discussão dos temas abordados pelo cinema brasileiro atual. Uma fase que começa com o escracho de “Carlota Joaquina”, de Carla Camuratti, sob o caráter preguiçoso da monarquia brasileira, até chegar aos filmes que mergulham no cotidiano nacional: “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, “Carandiru”, de Hector Babenco, para ficar nos dois mais representativos. Deles, apenas “Cidade de Deus” fugiu à narrativa clássica, com planos inventivos e fragmentados. Abriu, assim, espaço para que “Cinema, Urubus e Aspirinas”, de Marcelo Gomes, e a “A Concepção” pudessem fundir várias estéticas, com um conteúdo polêmico. Marcelo Gomes o fez desmatizando a cor, usando sépia, para melhor caracterizar a aridez do nordeste e da vida do nordestino – fez, desta maneira, um filme que cativou pela crueza do tema e pela representação da perspectiva da vida das pessoas que habitam o serão nordestino. Já Belmonte fez uma colagem de várias estéticas, usando para isso do “super oito” ao vídeo, dando a seu filme uma estrutura “underground”, por mais que isto pareça ultrapassado.

Mergulho na cultura marginal  “Underground”

foi uma das contribuições da contracultura à estética cinematográfica, literária e mesmo teatral. Não usava nada que representasse submissão aos padrões mercadológicos, de grandes produções, caras e dispendiosas. Era o barato, o marginal, o quase amador. O que importava era o conteúdo, a provocação, a busca de uma forma nova de fazer arte, apontando um novo caminho, longe das estruturas burguesas, capitalistas. “A Concepção” não é, no entanto, uma tentativa tardia de recuperar um tempo em que se acreditava em rupturas radicais, da forma que estava colocada durante a Guerra Fria. É uma variante do pós-moderno, do uso que se faz das tecnologias à disposição da arte ou mesmo da brincadeira caseira. Mesclar cenas em super oito, vídeo e 35 mm com imagens de TV pode se mostrar avançado, mas o que importa mesmo é o conteúdo. Este, porém, carece de melhor exposição, para que a forma não o esvazie, principalmente naquilo que tem de melhor: o tema da alienação, do niilismo, do hedonismo, da empulhação e da simples malandragem.

Em “A Concepção” três filhos de diplomatas que, à falta do que fazer numa Brasília sem perspectivas, decidem gozar a vida em orgias, até que surge um estranho que os instiga a dar sentido a uma existência vazia. Alex (Juliano Cazarré), Lino (Milhen Cortaz) e Liz (Rosane Holland) são jovens, belos, gozam de perfeita saúde, têm dinheiro e um apartamento onde podem desfrutar do prazer e fazer as loucuras que lhes vier à cabeça. Bebidas, drogas, sexo, muito sexo por dias e noites, sem nenhuma elucidação sobre o sentido daquilo tudo. Até aí, nenhuma novidade. Muitos filmes já abordaram as bacanais da alta inteligentsia, não por  falta do que fazer, mas como um modo de se divertir. Aqui a conotação, a partir do cenário, que é Brasília, o tema ganha contornos mais sérios. Trata-se da cidade que, segundo Lino, só tem duas saídas: “o hospício e o aeroporto”. A juventude tem como opção, para continuar sua existência sendo útil, participar de concurso público para entrar na burocracia. É tudo o que a entedia. As orgias são, enfim, uma forma de reagir ao impasse numa cidade fechada pelo poder.

Cultura do “sabe com quem está falando"

É justamente o poder das altas esferas que habitam a Capital Federal que está em jogo em “A Concepção”. É o poder que estigmatiza seus moradores que não integram a elite, não como filhos, mas como alguém que quer se valer de si próprio, por seus próprios meios. Todos têm que se esgoelar para ser alguém, como se fosse uma grife, uma marca pregada na gola do paletó. Muito mais do que o abominável: “você sabe com quem está falando?”. Principalmente os exteriores do poder, o carro oficial, o terno bem talhado, o jeito enfastiado de falar e, sobretudo, a aura, que faz com que a grife flutue por sobre os ombros dos que detém o poder. Estejam lá onde estiverem lá estará ela, a aura, dizendo, afinal, de quem se trata. É justamente, este o centro do que prega “X”, guru do grupo de filhos de diplomatas, e que o instiga a criar a seita do “concepcionismo”, cuja máxima é livrar seus seguidores “de quaisquer sinais que os identifiquem com poder”. Um poder entendido, repita-se, como portar documentos permanentes, identidade permanente, endereço permanente, indumentária permanente. É preciso ser “um ninguém”.

O objetivo é anular-se de tal forma que se perca a própria identidade. E sair usando suas prerrogativas de não ser ninguém para desfrutar de todos os prazeres possíveis e imagináveis, mudando de identidade à todo momento. Pode ser um pedreiro, uma garçonete, ou apenas um diplomata escandinavo perdido em Brasília, sem lenço, nem documento. As identidades, assim, se fundem, todos são todos e ninguém é ninguém.

E misturam-se os casais. Há transas homossexuais, overdoses, procura de caminhos que levem à verdade. Mas esta nas palavras do guru X tornou-se impossível tal o emaranhado de impasses a que os “concepcionistas” chegaram. “A verdade é uma terra sem caminhos, você não consegue chegar a ela nem pela religião, nem pelas leis”, sacramenta X. É o desencanto total. O “concepcionismo” é desta forma a negação do que o criou, mas nenhuma ação propõe para superá-lo. Nada para remover as entranhas pútridas do poder, apenas o niilismo e o hedonismo como forma de protesto. Mas também a negação do “ser alguém”, feita através da busca incessantemente o prazer”, termina por justificar a existência da seita. Ou seja, prepara-se a anulação do ser, como protesto ou forma de mostrar a falência da estrutura de poder.

Guru é o “anjo exterminador”

 
O próprio X (Matheus Nachtergaele), que emerge na madrugada tal qual um anjo exterminador, homem/mulher, subvertendo as relações entre Alex, Lino e Liz é, na essência, um dos vértices dessa estrutura de poder. Um personagem que se transmuta em vários seres, instigando seus seguidores a desestruturação e a anulação do ser. Espécie de anjo, adverso do personagem de Terence Stamp em “Teorena”, de Píer Paolo Pasolini, que só desestrutura, X é um mutante que conhece os corredores do poder, que pode ser tanto um corretor de bolsa quanto um esquizofrênico que assume várias personalidades. Mistura filosofia, transas e despersonalização sem dizer contra quem estão voltados. Usa, para isto, tecnologias de imagem, performance, palestras e instiga seus seguidores a dar golpe com cartão de crédito falsificado. Uma utilização da estrutura capitalista que beira à anarquia, como concepção de sociedade. E, desta forma, aponta o descompromisso como saída à despersonalização a que o neoliberalismo e a globalização levaram os seres humanos. Não são mais cidadãos, mas consumidores, números, e por isto são cambiáveis.

Não é uma explicação fácil, para um filme aparentemente despretencioso, pois não tem fórmulas, mas esquetes, seqüências que surgem de forma desordenada e que só adquirem forma numa análise que os ligue. X, em sua multiplicidade de perfis, deixa-se tomar pelo sensorial, às vezes pelo carnal, e nisso se assemelha aos gurus de auto-ajuda que têm solução para tudo, pois são frutos do caos e da desesperança. Mas sua racionalidade aflora às vezes, como no instante em que a seita se desmorona e ele deixa seus seguidores entregues a si próprios e desaparece como havia surgido, em meio ao nada. Nenhuma notícia há sobre ele, só os depoimentos de seus seguidores para contribuir ainda mais para sua despersonalização. 

                  
A narrativa fragmentada, usando depoimentos tomados na delegacia, pula de um personagem ao outro, reforçando a idéia de que tudo aquilo aconteceu como uma overdose, não como uma procura. “A Concepção” transforma-se, deste modo, no avesso do “underground”, como refutação ao padrão predominante, embora seja um filme de baixo orçamento Vira apenas um exercício estético, este sim pós-moderno, vazio de proposta. É tão só uma bela colagem das mais variadas linguagens e técnicas de montagem cinematográfica. É a tecnologia pela tecnologia, por mais que defenestre Brasília e sua falta de perspectivas para a juventude que, em princípio, tenta, como saída, montar uma banda de rock´n´roll e logo vê que não há espaço para outro Renato Russo. Os jovens que povoam a tela não são os das cidades satélites, mas os dos apartamentos das quadras nobres, cuja perspectiva não é arranjar um emprego, mas uma sala refrigerada para fazer carreira. A única que vem de outro contexto, é Ariane, atormentada pela invalidez do pai, sem condições de esboçar qualquer reação, salvo a de entupir-se da droga. Sua adesão ao “concepcionismo” é mais uma forma de escapar à violência cotidiana, do que tentar, através dele, uma solução para seus problemas.

                  
Montagem funde música em belas seqüências

Com sua estética pós-moderna, “A Concepção” longe de ser um filme ruim, exige alta dose de paciência para absorver sua proposta. Há belos momentos, quando as cenas se fundem com a música e esta as faz avançar, num sincopado emocionante. É quando o cinema emerge, povoado de imagens, não usando diálogos para explicar a ação. Esta vem pelo encadeado dos fatos, que geram o sentido. Flashbacks, avanços e recuos que nos remetem à “Estrada Perdida”, de David Lynch, a Transporting, de Danny Boyle, e a seqüência de alucinogénos de “Perdidos na Noite”, de Jonh Schlesinger. Fragmentos, que fazem Ariane deixar o quarto e entrar numa ampla sala, e na seqüência seguinte regressar ao mesmo espaço. Quem gosta de experimentalismo talvez ache pouco, pois outras obras já fizeram o mesmo, mas em se tratando de busca de linguagens e estruturas cinematográficas, não há como negar que é desta procura que se faz uma cinematografia.

É preciso se diferenciar e mostrar ao público que o audiovisual não é apenas o visto na telinha, na dupla forma de TV e de DVD, mas, principalmente, na ampla tela de cinema. E que o cinema brasileiro precisa de filmes com esta estrutura para apontar caminho narrativos e escapar à padronização hollywoodiana. Mas também não bloquear a ocupação de espaço por outros filmes que tentam ser o puro entretenimento. Um terminará abrindo espaço para o outro como ocorre em outros países com obras que em determinado momento podem trazer boas contribuições estéticas e conteudisticas, elevando o nível da discussão sobre a realidade nacional que se projeta no plano inclusive internacional. Pode parecer pretencioso, mas arte é feito dessa busca e “A Concepção” contribui para isto, mesmo que seu conteúdo só projete desconfianças em relação a estrutura social, denotando um pessimismo também presente em “Os Idiotas”, de Lars von Trier. De qualquer forma não há como ser otimista nos marcos do neoliberalismo, em que toda ação humana é passível de virar produto de consumo.

“A Concepção”. Brasil. 2004. 96 minutos. 18 anos. Direção: José Eduardo Belmonte.
Elenco: Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Milhen Cortaz e Murilo Grossi. Prêmios de melhor montagem e trilha sonora no Festival de Brasília 2005.

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