A concorrência comercial entre EUA e China

O acontecimento mais significativo em desenvolvimento no comércio internacional nos últimos anos tem sido a vertiginosa ascensão da China no ranking das exportações, em contraposição ao irresistível declínio dos Estados Unidos. Se as coisas continuarem&nb

Cabe ressalvar que as exportações dos EUA estão crescendo neste momento, reagindo, enfim, à queda do dólar frente ao euro, ao yuan, ao iene e outras moedas, o que reduziu o valor do seu escandaloso déficit comercial para US$ 58,1 bilhões em junho. Todavia, o comércio exterior avança no centro do imperialismo a passos bem mais lentos que na China, que na primeira metade deste ano registrou uma expansão de 27,6% nas vendas externas. Estas somaram 546,7 bilhões de dólares. Convém lembrar que em 1988 a participação das exportações chinesas no comércio mundial era de apenas 3,3%, correspondendo à décima posição na lista dos principais exportadores mundiais. Já em 2005, como resultado de um crescimento vigoroso e desigual, a China ocupou o terceiro lugar, com 7,3%. No mesmo período, a participação relativa dos EUA recuou de 12,6% para 8,7%.


 



Unidade de contrários


 



A ascensão chinesa e o declínio americano constituem um movimento histórico único, em que se manifesta o processo de desenvolvimento desigual das nações no plano comercial e onde também podemos identificar, com certa fartura de detalhes, o que a dialética denomina unidade dos contrários. O movimento real, no caso, é como uma síntese concreta da marcha unitária e conflituosa de dois contrários: queda, de um lado, e ascensão, do outro, processos intimamente interligados, que não podem ser bem compreendidos isoladamente. 


 


 
Alguns observadores, obcecados pela chamada “financeirização” da economia, não conseguem enxergar a importância do comércio na fase atual de reprodução do capital e do sistema capitalista em geral, chegando mesma a negá-la a priori, imaginando que a expansão do capital ocorre agora basicamente na esfera financeira. É uma concepção falsa da realidade, embora muito difundida, que devemos criticar e desmascarar, se quisermos avançar com mais segurança na análise da realidade.


 



Espaço da realização do capital


 


O comércio, conforme demonstrou Karl Marx, é uma peça fundamental do processo global de produção e reprodução do capital, tanto em escala nacional quanto internacional. É o espaço onde se dá a realização do capital e dos lucros, desfecho necessário da circulação do capital. Sem a atividade comercial, sem os atos prosaicos, contraditórios, porém unitários, da compra e da venda, a circulação do capital não se completa.


 



Quando isto ocorre, a transformação de capital-mercadoria em capital-dinheiro não se realiza e a conseqüência é que a reprodução capitalista é interrompida. O sistema entra em parafuso. Chega o momento da crise de superprodução, que de fato se verifica de forma intermitente, e inexorável, sob o capitalismo. Assim tem sido ao longo de toda a vida do sistema e esta verdade histórica elementar e fundamental da produção capitalista não mudou, a não ser na ideologia e nos sonhos delirantes da burguesia, como se viu com a exuberância irracional da “Nova Economia” e a formação da bolha imobiliária a partir de 1997.


 



Ficção e realidade


 


É por esta razão que, conforme têm enfatizado muitos economistas, o grande risco da chamada crise imobiliária, que está associada à superprodução relativa no ramo da construção civil, não está principalmente no pânico que afeta as bolsas de valores e os bancos, não reside na esfera financeira em si. O perigo maior é que a queda no consumo americano decorrente dos problemas no setor possa bloquear o crescimento do comércio mundial e produzir uma recessão de alcance global, o que pelo menos por enquanto não é o caso.


 



Se os prejuízos pudessem ser contidos na área financeira, atingindo apenas de forma marginal a chamada economia real, como pretendem o governo Bush e o FED (Federal Reserve, banco central dos EUA), os impactos da crise na terra do Tio Sam e no mundo seriam limitados e restritos. Neste caso, seria mais correto falar em turbulência passageira do que em crise. Se o nível de emprego continuar caindo e a desaceleração da produção evoluir para uma recessão, a coisa mudará de figura, provavelmente também para os chineses, que tem no mercado interno norte-americano o principal destino de suas exportações.


 



Não foi por mera coincidência que o humor nas bolsas azedou no final da semana passada após a notícia de que a queda do nível de atividades, mais acentuada na construção civil, provocou uma redução líquida de 4 mil postos de trabalho na economia norte-americana.


 



Os impactos de uma crise no mundo real da produção são bem mais dramáticos e relevantes para a sociedade que uma crise restrita ao mundo das finanças, carregado de ilusões e ficções. Porém, não devemos interpor uma muralha da China entre os fenômenos econômicos que ocorrem na esfera financeira e aqueles que se dão no processo real da produção de mercadorias, pois há uma estreita relação entre ambos e, no frigir dos ovos, o primeiro se revela reflexo do segundo.


 



Produção de mercadorias


 



Isto tudo nos remete de volta a Karl Marx, que inicia a sua principal obra “O capital” com as seguintes palavras:  “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. Por isso, nossa investigação começa com a análise da mercadoria” (1)


 



Em que pesem as transformações ocorridas ao longo do século 20, o capitalismo não deixou de ser um sistema produtor de mercadorias, muito pelo contrário. Sua essência é a produção de valores, sua força motriz a geração de valores excedentes, ou seja, conforme a concepção marxista, a criação de mais-valia. A circulação do capital na esfera financeira, em que o dinheiro parece criar mais dinheiro (D-D’), gera a ilusão de que o capital e o capitalismo dos nossos dias podem prescindir da produção de mercadorias para se expandir, alimentando-se exclusivamete da “financeirização” (exacerbada pelo parasitismo americano).


 



É certo que tal ilusão tem efeitos sobre a realidade, na medida em que estimula a especulação e a irracionalidade nos mercados de capitais, mas se revela como tal (ou seja, como uma custosa ilusão) nos momentos de crise como esta que estamos presenciando agora.  A suposta financeirização mascara o movimento real de valorização e reprodução ampliada do capital, que repousa sobre o tempo de trabalho humano. A suposição de que a desregulamentação dos fluxos financeiros e liberalização do câmbio estabeleceram uma autonomia absoluta ou uma efetiva independência dos fenômenos monetários em relação à produção ou à chamada economia real é falsa.


 



Lei do valor


 


Se de fato pretendemos avançar na compreensão da realidade econômica do sistema imperialista na atualidade é preciso ter como ponto de partida a famosa lei do valor, descoberta originalmente por Adam Smith e desenvolvida posteriormente por David Ricardo e Karl Marx, que reconhece a identidade entre o valor econômico (social, não “natural”) e o tempo de trabalho. A China, cuja prosperidade se fundamenta no emprego e no tempo de trabalho incorporado à produção pela classe trabalhadora mais numerosa do mundo, com um grau de produtividade respeitável e crescente, fornece um grande exemplo da atuação da lei do valor e do primado da produção sobre as finanças. É graças à produção industrial (e não ao parasitismo financeiro tão saliente e visível na terrinha do Tio Sam) que o país asiático está se transformando numa grande potência econômica.


 


 



Na circulação dos valores produzidos pela indústria, o comércio tem um papel exclusivo, único e insubstituível. É no comércio exterior, por sinal, que se origina, na atualidade, o capital excedente das nações destinado à exportação. O comércio internacional não está nem pode ser dissociado da exportação de capitais. No caso da China, é uma das fontes para a acumulação de reservas, que por sua vez são transformadas em investimentos no exterior (nos EUA – principalmente títulos do governo Bush; na África; na Ásia; na América Latina ou na Europa). No caso dos EUA, do comércio deficitário emerge a maior dívida do planeta e uma assombrosa necessidade de financiamento externo, que importa em cerca de 3 bilhões de dólares a cada 24 horas. É tolice do pensamento metafísico e idealista imaginar que o passivo externo dos EUA não é problemático porque está denominado em dólar, pois na realidade o fenômeno está na base dos desequilíbrios e das crises financeiras internacionais.


 



O tema requer novas reflexões.


 



  


Nota


 



1-  “O capital”, Civilização Brasileira, 1975, com tradução de Reginaldo Sant’Ana.

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