“À Deriva”: nem tanto ao mar

As conseqüências das relações familiares na vida de uma adolescente de alta classe média são abordadas com sensibilidade pelo diretor brasileiro Heitor Dhalia, que, no entanto, aponta as fragilidades de seu rito de passagem

Numa sequência crucial para se entender o desfecho de “À Deriva”, do brasileiro Heitor Dhalia, desenvolve-se um emblemático diálogo entre a adolescente Filipa (Laura Neiva) e o garçom (Cauã Raymond), que dá a medida das relações de gênero hoje. Ela está num daqueles momentos em que a afirmação se dá pelo desafio aos cânones e ele é apenas quem fará parte desse rito de passagem. Murmúrios, gestos contidos, sensualidade, criam o clima necessário ao que se seguirá com a presa, o garçom, se mostrando tão predador quanto ela, caçada. Ela busca o veneno que lhe é proibido e ele lhe dá em conta gotas, com a observação de que “este é um segredo entre nós”.

Dhalia, de “Nina”, sua estréia no cinema, e “O Cheiro do Ralo”, usa de insinuações, olhares, trejeitos de Filipa, sorriso malandro do garçom, para tecer um quadro do comportamento “teen”, cujo amadurecimento de dá nas nesgas do permissivo. Existe uma motivação para a suposta ousadia dela, em virtude da decomposição de sua estrutura familiar, não buscando de forma alguma um predador; trata-se mais de escapismo, compensação pelas coisas ter saído de seu eixo. E ela, pressionada pelas circunstâncias, insurge-se num ambiente adulto, onde as armadilhas estão sempre a postos ou podem, simplesmente, ser criadas.

Presa para Filipa é apenas uma escada

De forma alguma, o predador, cheio de malícia, está à altura do desafio. Isto porque seu papel ali é de ser apenas escada. Naquele momento específico, predadora, se for este o caso, é ela, Filipa, que usa sua sensualidade para atraí-lo como uma abelha rainha. Mas, no fundo, ele, o garçom, serve para marcar seu rito de passagem. Inexiste culpa, pelo contrário, a conclusão desta sequência se dá noutro cenário, com a transição da inocência para a entrada no mundo adulto se mostrando recompensadora. Este, aliás, é o vislumbre de inteligência do diretor/roteirista neste “À Deriva”, cujo contexto é o do filme de praia, fim-de-semana, rito de passagem, tema, portanto, de inúmeros filmes ao longo das décadas. Seu achado se dá pelo tratamento menos dolorido ou trágico, embora com perdas difíceis de serem superadas.

Seu filme provoca certo estranhamento nas primeiras sequências, sem que o eixo central se apresente. Existem muitas cenas de grupos de adolescentes, de reunião da família e amigos à beira da piscina, em mesas de almoço e jantar. Um ir-e-vir pela praia de Filipa, conversa atravessada de sua mãe Clarice (Débora Bloch) com o marido franco-brasileiro, Mathias (Vicent Cassel), e as escapadas deste para se encontrar com a vizinha, Ângela (Camille Belle). Há, no entanto, um mal estar que se prenuncia nas espetadas de Clarice e nas respostas ríspidas de Mathias. Em meio a isto, estão as duas filhas, Filipa e Fernanda (Izadora Armelin) e o filho Antônio (Max Huzar), todos adolescentes. Eles não se dão pelo que corre entre seus pais. Aproveitam o fim de semana na praia como podem, entre descobertas e o tédio do entrecruzar de casais “ficando” na praia.

Comportamento ético de Mathias esconde suas razões

As rusgas entre Clarice e Mathias, em princípio, parecem criadas pelo comportamento ético dele, escritor, que se nega a ceder os direitos de adaptação de um romance seu para a televisão, quando o casal tem problemas de dinheiro. Clarice, cuja tendência para a intriga parece novelesca, espeta-o há todo momento, inclusive diante dos amigos. E serve para Dhalia tecer os limites da relação entre ambos, até que ela se transforme num remendo mal costurado. Então, as andanças de Filipa pela praia ganham outro significado – ela está ali para ser o elo entre a forma como os pais a veem e como ela os vê. Não é o personagem que gira em torno deles, eles, sim, espelham a maneira como ela reagirá quando os laços, vistos por ela como firmes, se mostrarem cheios de fragilidades. Os fragmentos de conversas atravessadas, risos nervosos, agradecimentos cínicos, indelicados de ambas as partes, vistos e ouvidos por ela, são os reflexos de uma relação que ditará seu futuro.

Primeiro porque, embora seja a filha mais velha do casal, eles a tratam como criança. Ignoram seu crescimento e sua percepção do que realmente está acontecendo. Comportamento não diferente da maioria dos casais em relação aos filhos em crescimento, notadamente os adolescentes. Mathias mostra-se carinhoso, brincalhão, atencioso com ela, enquanto a mãe é fria, distante, ainda que a trate bem. Esta dualidade do ver e ser visto dita os entrechos do filme. Na maioria deles, Filipa, reforçando o título, está à deriva. Perambula pela praia, circula com os amigos, participa de suas brincadeiras e até se permite “ficar” com Arthur (Daniel Passi), num jogo típico de adolescentes. Mas, diferente das amigas, ela não se presta ao joguinho em que “ficar” pode evoluir para o “estar”.

Dhalia evita estilo “filme de praia”

O perambular pela praia do litoral carioca, especialmente em Búzios, povoado de freqüentadores classe média alta, com suas casas sofisticadas, mostra o quanto ela busca onde se apoiar. A percepção de que os ruídos podem se transformar em gritos e algo mais sério está sempre em evolução. Não diferente dos filmes de praia, de fim-de-semana, que tratam do rito de passagem. Nem da simbologia da praia, do verão, da paisagem tropical: há sempre o erotismo, o calor, o despertar para o outro. E a temperatura empurrando seus frequentadores para o encontro amoroso inevitável. Dhalia consegue evitar esta espécie de estrutura de filmes desta natureza. O comportamento de Filipa é ditado tanto pelas rusgas dos pais, quanto pelas inquietações próprias de sua idade. Em determinado momento, como na seqüência já descrita, ele se vê só, tendo de contar consigo mesma.

Neste instante, surgem as mais diversas armadilhas, características das situações por ela vividas. Enquanto ela apreende o mundo ao redor, a dualidade caçador/presa se transforma na sedução entre predador/ presa. Distante de seu universo “teen”, onde o “ficar” impera, enquanto nos bares, clubes, festas, o predador está sempre à espreita, não para relação afetiva, amorosa, mais pelo simples prazer casual, sem maiores implicações. Ela o sente quando se deixa levar pela conversa de Lucas (Gregório Duvivier), só o percebendo ao ver que ele quer tão somente usá-la. Inversamente à bela sequência com o garçom, seus instintos aguçados não a permitem se transformar em presa, ela não está no comando da situação, nem se importa em evadir-se, sem maiores conflitos. Vê-se que ela sabe desarmar as armadilhas, deixando o predador entregue a suas frustrações.

Clarice se vinga de forma contraditória

Mesmo com este comportamento, Filipa se mostra uma garota ainda pela forma como se relaciona com o pai, Mathias. O ciúme que dele tem. A maneira como o vigia e a ele reage. Tem muito de imaturidade, de inconseqüência, pois não mede os resultados de seus atos, embora reforce a trama estruturada por Dhalia. No entanto, servirá para ela entender as nuances do relacionamento dos pais, usando-o como testemunho de algo que lhe escapa. E fazê-los se surpreender, principalmente Mathias que a via apenas como sua menina, numa fase de difícil transição para a juventude. Fato que não chama a atenção de Clarice, presa unicamente a seus problemas e à procura de uma saída que afete menos os filhos.

Clarice é um personagem de seu tempo, da mulher que acumula ressentimentos e traições do marido, até se dispor a dar o troco. Com suas frases supostamente bem humoradas, ela se mostra cínica, ferina, tentando atingi-lo. Ele se esquiva, revida, de forma violenta. Suas razões vão aparecendo e as dele também, sem que Dhalia se apresse em desvendar o que, afinal, acontece entre ambos. Brigas, desavenças, distanciamento, são normais nas relações amorosas. Menos as de Clarice/Mathias. “Quer saber, nunca te amei, não quero mais acordar ao seu lado” – desabafa ela. Quando, enfim, o copo transborda; tudo está dito. Fica-se por alguns segundos sem entender o desfecho – ele vem através dela. Com um tipo de vingança surpreendente para estes tempos de indenizações, partilha de bens, guarda dos filhos. Ela, não, revida onde o orgulho do parceiro dói mais: ela o diz e o faz.

Dhalia esboça visão da mulher da classe alta

Resta a Mathias, neste momento, o vazio, a de falta lugar para se apoiar. E uma indagação do espectador ante a decisão dela: seria este um desvio do comportamento padrão da classe média alta, onde partilha de bens e indenizações ditam as separações ou Dhalia estaria induzindo uma nova forma de rompimento matrimonial? Há toda uma construção a dois a considerar, com implicações futuras sobre a sobrevivência de ambos, notadamente dela. Quer apenas atingi-lo em seu orgulho próprio, de macho, contradizendo costumes de classe – com a palavra as militantes de gênero – e toda a luta travada para a mulher não ser prejudicada. Clarice, porém, ao tomar sua decisão, acrescenta-lhe outra vertente ainda mais deslocada da corrente atual. Muitas espectadoras talvez fiquem vingadas. Filipa e os irmãos talvez se perguntem por quanto tempo tal decisão irá perdurar, sem ter uma resposta condizente.

A esta altura a estranheza inicial foi superada, vê-se o filme de Dhalia, como reflexo das relações familiares dos dias atuais, em que a igualdade de gêneros, pelo menos na alta classe média, é ditada por escolhas à disposição da mulher. A dependência, sempre lamentada, ficou para trás. Clarice, professora, poderá viver sua nova experiência, sem pensar nas contribuições financeiras de Mathias? ”Vou continuar fazendo minhas coisas” – ela lhe diz. Resta nesta relação os filhos, destacadamente Filipa, sobre cujos ombros recai a responsabilidade de ajudar os irmãos a superar, supostamente, o vazio deixado pela mãe. Neste instante, seu rito de passagem agrega mais que experiência individual, da adolescente que se desperta para as possibilidades do corpo, expandindo-a para as opções oferecidas pela vida.

“À Deriva” é, assim, um filme sobre a juventude classe média alta sem problemas de sobrevivência, tendo seus horizontes já delineados. Seus dilemas não descambam para o melodrama, a tragédia, o impasse momentâneo não a impedirá de seguir em frente. Daí a escolha de Filipa pode parecer pesada, mas não o suficiente para bloquear sua visão da vida. O mostra a paisagem que a câmera de Dhalia capta em todo seu esplendor, os amigos dela, todos de família bem de vida, e as possibilidades de superação do pai e da mãe. Crescer para ela é questão de deixar o tempo fluir, causa menos dor que o impacto da perda em circunstâncias em que a busca de superação impõe limites quase insuperáveis. Nada disto existe para ela. Não que seu rito de passagem não traga emoções, baques, nem que a forma como Dhalia o trata não seja esteticamente perfeito – só não faz o espectador ver além dele.

“À Deriva”. Drama. Brasil. 2009. 103 minutos. Roteiro/Direção: Heitor Dhalia. Fotografia: Ricardo Della Rosa. Elenco: Vicent Cassel, Débora Bloch, Camille Belle, Laura Neiva, Daniel Passi, Max Huzar, Isadora Armelin.

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