A despedida em duas rodas dos filhos do Brasil
De moto, bicicleta ou carro, muitos brasileiros precisam acelerar no trânsito para ganhar um trocado
Publicado 11/12/2021 08:50 | Editado 13/12/2021 11:47

Antes de sair de casa, Jonatas Davi dos Santos, de 30 anos, despediu-se das três filhas, beijou a mulher, colocou a caixa de isopor nas costas, pegou a bicicleta e partiu para mais um dia de trabalho como entregador de aplicativo. A família não sabia, mas aquele seria o último dia da vida de Jonatas.
Debaixo do sol quente, Jonatas vai desviando dos obstáculos do trânsito com a sua bicicleta assim como faz para vencer as barreiras que a vida lhe impõe. Na caixa de isopor, ele leva comida e também os sonhos de uma vida melhor. O sonho de comprar uma moto nova, um presente para a namorada ou uma casa para a mãe que mora de aluguel.
De moto, bicicleta ou carro, muitos brasileiros precisam acelerar no trânsito para ganhar um trocado. Muitas vezes, com fome, levam comida para uma gente que se acha esperta, mas defende a reforma trabalhista. Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Enquanto a maioria dos brasileiros luta para conseguir o pão de cada dia, existe uma pequena parcela de milionários que se beneficia a custa do suor alheio, sem nada produzir. Essa é a luta de classes.
Brasil, pátria mãe. Gentil? Todos os dias, milhões de brasileiros ainda são humilhados nas quebradas onde moram. É violência policial, falta de saúde, escola de qualidade, saneamento básico. Dignidade. Até quando?
Daí vem o presidente Bolsonaro, defensor das elites do país, e diz: “Ou se escolhe ter emprego ou direitos trabalhistas”. É fácil falar, quando nunca se trabalhou na vida.
Nesse momento, discute-se em Brasília uma nova reforma trabalhista para retirar mais direitos dos trabalhadores. O estudo encomendado pelo governo Bolsonaro propõe, entre outras medidas, trabalho aos domingos e proíbe o reconhecimento de vínculo de emprego entre prestadores de serviço e aplicativos.
Se essa proposta for aprovada, milhares de trabalhadores serão prejudicados. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existem hoje no Brasil cerca de 1,4 milhão de pessoas que trabalham como motoristas ou entregadores de aplicativos.
Jonas fazia parte dessa legião de trabalhadores, sem direito ou qualquer proteção trabalhista. Morreu trabalhando para sustentar a família. No velório, a tia dele, dona Almerita Severina Teotônio, de 55 anos, mandou o papo reto:
“Ele era um menino trabalhador. Tinha dias que ele não conseguia nem comer. Ele estava sentado comigo comendo. De repente, o aplicativo tocava e ele saía correndo. Sempre foi um pai responsável”, contou ela.
Um dia antes, no sábado (04/12), por volta das 20h30, na Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio de Janeiro, Jonatas foi atropelado pelo jogador de futebol do Flamengo, Ramon Ramos, após avançar um sinal de trânsito. O atleta, que de acordo com a polícia não havia ingerido bebida alcóolica, tentou socorrê-lo, mas sem sucesso.
Uma pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir), da Unicamp, realizada em 26 cidades brasileiras, revelou que 56,7% dos entregadores de APPs têm uma jornada de nove horas ou mais e que 52% trabalham nos sete dias da semana. Apesar das longas jornadas de trabalho, a remuneração diminuiu cerca de 60% mesmo com o aumento do número de pedidos durante a pandemia.
Na proporção inversa, cresce também o número de jovens brasileiros que perdem as suas vidas sobre duas rodas no Brasil. Na maior cidade do país, São Paulo, acidentes de trânsito mataram 809 pessoas em 2020. Quatro em cada dez eram motociclistas, informa a companhia de trânsito local.
Por ironia do destino, o sonho de infância de Jonatas era ser jogador do Flamengo. Quantos ainda morrerão, sem qualquer direito trabalhista, nessa roleta-russa do capitalismo?