“A Falta que me faz”: Horizontes limitados

O cotidiano de quatro adolescentes pobres da região de Diamantina é o centro da narrativa da diretora Marília Rocha

                  O árido cotidiano de quatro garotas de Curralinho, na região de Diamantina, se confunde com a crueza da paisagem. Seus passeios pelos maciços, banhos de rio, volteios no bailão e conversas sem fim sobre os mesmos temas ditam suas vidas. Estes giram sempre em torno de suas escolhas amorosas e de seu futuro. As circunstâncias do meio onde vivem e do horizonte que lhes é apresentado não lhes deixam vislumbrar um mundo melhor. É sobre estas vidas nas bordas da Cordilheira do Espinhaço, em Minas Gerais, que a diretora Marília Rocha se debruça em seu documentário “A Falta Que Me Faz”.

                  A exemplo do cearense Petrus Cariry, em “O Grão”, ela dá voz aos deserdados por estruturas sociais que os colocam em constante estado de sonho e desencanto. Desencanto por não lhes apresentar horizontes diferentes da busca de pequenas recompensas, de relações amorosas que se revelam cheias de armadilhas. De sonho por insistirem na crença de algo pode dar certo. Casos de Alessandra, mãe adolescente, ou de Valdênia temerosa de que o namorado Derley não lhe dê a segurança almejada.

                  Suas amigas Priscila e Shirlene não fogem a estas imposições: da busca incessante de parceiro e recorrências à luta dos pais para encontrar no garimpo o tão sonhado diamante que mudará suas vidas. Quando muito elas se entregam à venda de bijuterias para ganhar algum trocado para comprar a ansiada roupa ou calçado. Não há nada mais que isto em “A Falta Que Me Faz”. Seus personagens o remetem à busca de um cinema que fuja dos grandes temas, do cinema de massa, de olho na bilheteria tão somente, para se deter na geografia e nas relações sociais do trabalhador ou, neste caso, do lumpesinato das cercanias do Vale do Jequitinhonha.

                 É um cinema que se pretende popular no sentido de tratar do cotidiano do povo, de levar o espectador a enxergar seus horizontes, pouco vistos na tela. E escapa aos estereótipos pela ausência de glamour do quarteto (Valdênia, Alessandra, Priscila e Shirlene), nada global ou hollywoodiano. Pelo contrário, ele não cativa pela beleza, a fotogenia, nem a câmera de Marília Rocha se detém muito nele. Prefere mostrá-lo quase indistinto, com raros solos, evitando a narrativa intimista. Mas que atraem, sobretudo, pela veracidade de suas vidas.

                Algum espectador poderá reclamar dizendo que a falha de “A Falta Que Me Faz” é não permitir intimidade com os personagens, que a câmera tem receio de deles se aproximar. Isto lhe permitiria diferenciar Alessandra de Priscila, Valdênia de Shirlene. Haveria melhor entendimento dos sonhos, frustrações e horizontes de cada uma delas, mostrando quem são elas de verdade. Inexistiria a dúvida sobre o gênero de filme a que ele assiste; que oscila entre a ficção e o documentário. No princípio lhe parece ficção, depois documentário. Ele só o percebe sequências depois, quando os diálogos e as situações se repetem, e então os personagens se misturam em sua cabeça.

               Uma das caras regras da dramaturgia é individualizar o personagem no coletivo, para que ele caminhe com o grupo e o reforce. Mesmo no documentário brasileiro atual, em que o diretor Eduardo Coutinho criou uma multiplicidade de temas e abordagens, como em “Jogo de Cena”, o limite entre o documentário e a ficção tornou-se imperceptível. Não se sabe onde começa um e outro e onde predomina a encenação. Às vezes, Marília Rocha avança como no desfecho para situação idêntica ou intervém na ação, abandonando a suposta neutralidade do narrador ao entrevistar o personagem/ator.

                O espectador entende que há uma voz interferente. Ainda que só se pronuncie na estruturação dos planos e das sequências, ele se intromete na narrativa, dizendo inclusive qual o seu trabalho no filme. E sai para outra vertente quando opta pelo desfecho tipicamente ficcional, rompendo certa linearidade. Mas não torna “A Falta Que Me Faz” um filme-guia. Termina sendo só um achado, melhor estruturado pela dupla Sérgio Machado/Karin Ainouz em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” ao colocar o personagem na estrada refletindo sobre seus descaminhos enquanto funde ficção e documentário, ficção e realidade.           

A Falta Que Me Faz”. Documentário. Brasil. 2009. 85 minutos. Direção: Marília Rocha.  Elenco: Alessandra Ribeiro, Valdênia Ribeiro, Priscila Rodrigues, Shirlene Rodrigues.

(*) Prêmio do Júri de Melhor Filme no 5º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.

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