A indignação dos inocentes

Não preciso repetir aqui – por suficientemente sabida – a natureza da crise econômica, tampouco da ainda mais grave crise política que assola o país. Decorrente da inconformidade da direita com os resultados das eleições presidenciais de outubro do ano passado, e da verdadeira guerra movida desde então contra a presidente Dilma Rousseff, a crise política compromete seriamente a governabilidade. E, sem esta, difícil sair da adversidade econômica, vencer o ajuste fiscal e retomar o crescimento.

Não é preciso dizer também que a governabilidade, nas circunstâncias presentes, significa governar com o PMDB. É o que exige a atual correlação de forças, independente do que se pense a respeito desse partido e das decorrências limitantes de uma aliança desse tipo. O governo vem trabalhando – não sem dificuldades – no sentido de ampliar e consolidar seu apoio congressual, pois no presidencialismo de coalização que vige em nosso país, na ausência de tal apoio a governabilidade dará com os burros n’água e, sem ela, o governo também vai para o brejo, para usar conhecidas expressões populares.

A direita, capitaneada pelo PSDB, busca, obstinadamente, um só objetivo: derrubar a presidente Dilma Rousseff, seja lá como for. Já tentou anular as eleições e evitar sua diplomação. Não deu certo. Da posse até agora, a guerra tem sido total, a qualquer pretexto. No momento, a bordo da decisão obviamente politizada – e, portanto, facciosa – do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as chamadas “pedaladas fiscais”, busca vitaminar o processo do impeachment presidencial.

A coluna de André Singer do último sábado, 10, na “Folha de S. Paulo” (“Falso brilhante”), procede a um exame preciso a respeito das tais “pedaladas” identificadas pelo TCU (que, a despeito de se considerar uma corte, não passa de órgão auxiliar da Câmara Federal). “As contas relativas à Bolsa Família, ao Seguro Desemprego e ao Abono Salarial, gerenciadas pela Caixa Econômica Federal (CEF), teriam ficado negativas em 59% dos dias daquele ano”, escreve Singer. Ou seja: o governo teria tomado por empréstimos recursos de um banco público, o que configuraria uma violação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

O articulista explica: “Na defesa oral apresentada perante os ministros, Luís Inácio Adams [Advogado-Geral da União] lembrou que, ao final de 2014, o Tesouro tinha a receber da CEF 141 milhões de reais. Onde já se viu tomador de empréstimo receber em lugar de pagar dívida contraída?”.

“Os ministérios”, registrou Singer, “têm um contrato de serviço com a CEF, que administra as sobrecitadas contas [dos programas sociais]. Nos dias em que ela fica negativa, produz-se um haver em favor do banco, quando positiva, em favor do Tesouro, procedendo-se a um ajuste entre uns e outros. No caso de 2014, quem devia era a Caixa e não a presidente. Onde o crime, então?”.

Ainda assim, baseado na decisão do TCU, que é apenas uma recomendação aos parlamentares, nada mais que isso, a articulação do impedimento da presidente prospera, agora chegada à Câmara Federal, embora enfraquecida por decisão recente, ainda que em caráter liminar, de dois ministros do Superior Tribunal Federal que suspendeu o trâmite do processo de impeachment tramado pelo conluio entre o deputado Eduardo Cunha e as lideranças demo-tucanas.

São dificuldades à defesa do governo não apenas os tropeços na recomposição da base aliada, como também a erosão do apoio social a partir da maciça campanha da mídia e de medidas impopulares decorrentes do ajuste fiscal. Tudo isso coloca sob ameaça todo um projeto popular, de fundo democrático e progressista, que vem sendo construído a partir de 2003.

Concordo com a conclusão de Singer: “Ao governo cabe promover ampla campanha de esclarecimento. Se não o fizer, deixará o principal argumento pró-impeachment tomar conta do público por mera repetição”. Desde o início do segundo mandato, venho observando e registrando em minha coluna no Vermelho o que sempre considerei uma postura a meu ver inadmissivelmente defensiva do governo, do PT e da própria presidente diante da crise política que só fazia avolumar-se. A guerra pela derrubada do mandato eleito em outubro passado tornava-se cada vez mais virulenta, alastrando-se do parlamento e dos partidos de oposição para as ruas, com o apoio militante da grande mídia, e o governo mantinha-se, ao menos em termos públicos, expectante, num distanciamento olímpico dos ultrajes da direita mais notoriamente golpista e dos xingamentos com que a onda de ódio e intolerância cumulava Dilma, seu partido e Lula. Parecia faltar ao governo, notadamente à presidente, o que conhecemos como a indignação dos inocentes, dos acusados falsamente, dos vilipendiados. Aquela reação até mesmo acalorada de alguém diante de acusação caluniosa que lhe é feita e que, por isso mesmo, sente-se tangido a desmascarar a trama de que é vítima. A palavra da presidente, quando dita, sempre se mostrava fria, impessoal, algo burocrática, como se, a rigor, desconhecesse o universo de ultraje que a cercava. Nada dessa postura ajudava na sensibilização da sociedade a seu favor.

Espero que o discurso presidencial da última terça-feira, 13, na abertura do 12o Congresso da CUT, em São Paulo, tenha sido um sinal de que está terminando o templo da complacência com as tramas golpistas e seus autores, ao menos da parte de uma Dilma Rousseff que se mostrou firme, incisiva, dura em certos momentos, embora, como sempre, sem a retórica (que não tem) que conferiria às suas palavras o tom justo e mais adequado da indignação.

Ao lado de Lula e do atual senador uruguaio e ex-presidente José Mujica, ela foi enfática diante de mais de dois mil sindicalistas: "Eu me insurjo contra o golpismo e suas ações conspiratórias, e não temo seus defensores". E mais: "Pergunto com toda a franqueza: Quem tem força moral, reputação ilibada e biografia limpa suficientes para atacar a minha honra?". Acusando os golpistas de “moralistas sem moral” e de “conspiradores”, Dilma afirmou que eles “tentam obter o impeachment para interromper um mandato conquistado com 54 milhões de votos”, sem que haja acusação alguma à titular. Prometeu “não se dobrar” e advertiu: "Ninguém deve se iludir. Nenhum trabalhador pode baixar a guarda".

"Muita coisa está em jogo: a democracia pela qual lutamos, o voto popular como base do poder e a inviolabilidade do mandato concedido pelo povo […] Para impedir o retrocesso, conto com as forças democráticas do Congresso, conto com a serenidade dos nossos tribunais, conto com o povo brasileiro e com os movimentos sociais", finalizou.

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