A inflação do dólar

Conforme apontaram alguns economistas, a queda do dólar é uma causa relevante da pressão inflacionária que se verifica em âmbito internacional, muito embora não seja a única. Após a Segunda Guerra Mundial, o dólar transformou-se num equivalente mundial de

Antes de ser um movimento de alta generalizada dos preços, a inflação é melhor definida como um processo de desvalorização da moeda. A elevação dos preços é, primariamente, o efeito e não a causa da inflação. Se, por exemplo, um exportador europeu vende em dólares e converte as divisas em euros verá sua margem de lucros reduzida com a queda do dólar e apreciação do euro e será tentado a majorar os preços para preservar os ganhos. O mesmo ocorre com exportadores na Ásia ou em outras regiões, A queda do dólar desencadeia, naturalmente, uma pressão inflacionária no mundo. Por isto, podemos afirmar que, em alguma medida, a inflação mundial é a inflação do dólar.


 


Efeitos desiguais


 


A repercussão das mudanças nos valores da moeda sobre os preços não é uniforme. Se todas as mercadorias tivessem seus valores de troca alterados de forma sincronizada, no mesmo ritmo e intensidade, os efeitos sociais seriam nulos, a rigor não haveria o que chamamos de inflação.


 


“O dinheiro só é importante pelo que proporciona”, observou o economista inglês John Maynard Keynes num ensaio sobre “Inflação e deflação” (1). “Assim, se uma mudança na unidade monetária fosse uniforme em sua operação e afetasse todas as transações igualmente, sua conseqüência seria nula. Se, por alteração no padrão estabelecido de valor, uma pessoa passasse a receber e a possuir o dobro do dinheiro de antes, em pagamento de todos os direitos e de todos os esforços, e se também passasse a pagar o dobro por todas as compras e por todas as satisfações, ele em nada seria afetado.”


 


Luta de classes


 


“Segue-se, portanto, que uma variação no valor do dinheiro, isto é, no nível dos preços, só é importante para a sociedade na medida em que sua incidência seja desigual”, conclui Keynes. É o que de fato ocorre nos processos inflacionários registrados ao longo da história. “Assim, uma alteração nos preços e nos ganhos, medida em dinheiro, geralmente afeta diferentes classes desigualmente, transfere riqueza de uma para outra, produz aqui opulência e ali necessidade e redistribui os favores da Fortuna de tal forma que se frustra o desígnio e se desaponta a esperança”.


 


Em outras palavras, podemos afirmar que a inflação acirra a luta de classes e dela se realimenta. O economista inglês chama a atenção para este efeito político logo no início do texto que dedicou ao tema, atribuindo a Lênin a idéia de que “a melhor maneira de destruir o sistema capitalista é desmoralizar a moeda”.


 


Loteria


 


A desvalorização da moeda e a guerra dos preços relativos desorganizam as relações entre credores e devedores, promovem uma redistribuição desigual dos lucros entre os diferentes setores e ramos da produção capitalista, opondo uns aos outros e fazendo com que “o processo de aquisição da riqueza degenere em jogo e loteria”.


 


A experiência brasileira, dos anos 80 e início dos 90 do século passado, é bem ilustrativa a este respeito. A tempestade grevista que atravessou a nossa primeira década perdida (1990-90) foi em larga medida uma resposta da classe trabalhadora aos efeitos deletérios da inflação sobre os salários. As categorias também foram atingidas de forma desigual. Quem tinha maior capacidade de organização, mobilização e luta evitou perdas maiores. Os segmentos mais débeis e desorganizados da classe arcaram com as maiores perdas.


 


Termos de troca


 


No caso da pressão inflacionária que se observa atualmente no mundo, a desigualdade de efeitos sobre as economias se manifesta na alteração dos preços relativos e nas relações de troca entre os produtos manufaturados e as chamadas commodities, com estas últimas subindo numa proporção significativamente superior aos primeiros, com destaque para o ouro, o petróleo e os alimentos.


 


Este fenômeno tem a ver com a decadência americana e o deslocamento do eixo dinâmico da indústria mundial para a Ásia, especialmente com o crescimento ininterrupto e a competitividade da China, que afeta a demanda mundial por matérias primas e combustíveis, assim como estimulou a concorrência e pressionou para baixo o valor de troca dos bens industrializados. Não restam dúvidas de que os desdobramentos de tudo isto, em certa medida, são positivos para alguns países situados na periferia do sistema capitalista, exportadores de commodities. E ajudam a explicar, junto com o fluxo positivo de investimentos estrangeiros, a melhoria das contas externas e acumulação de reservas nas nações ditas “emergentes”.


 


Riscos


 


Por outro lado, a disseminação da tendência inflacionária promete provocar transtornos sociais crescentes, na medida em que se concentra nos alimentos e combustíveis e também em que já está estimulando reações conservadoras em termos de política monetária e fiscal. A elevação das taxas de juros e o corte dos gastos e investimentos públicos, que se verificam no Brasil, por exemplo, vão afetar o ritmo de crescimento e podem comprometer a retomada de uma trajetória de desenvolvimento sustentado que parecia estar se esboçando a partir de 2004.


 


As conseqüências históricas da inflação do dólar e da inflação mundial não ficam nisto. São bem mais amplas e exigem maiores investigações, mesmo porque compreendem também o plano da geopolítica. Se a desmoralização da moeda transforma a atividade econômica numa loteria e produz, na consciência popular, uma desmoralização do capitalismo, como sugeria Keynes, a decadência do padrão dólar, que temos o prazer de apreciar num camarote da história, reflete a decomposição da hegemonia econômica e política dos EUA no planeta e sinaliza a necessidade de uma transição para outro sistema de relações internacionais, que oxalá não seja mais imperialista.   


 


Nota


 


1-O ensaio de Keynes sobre a inflação foi publicado pela editora “Nova Cultural”, no corpo da coleção “os economistas”, com tradução de Rolf Kuntz
          


 

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