A justeza (ou não) da política externa brasileira

A não solução do problema de Honduras e as imposturas do imperialismo no Haiti, numa grande jogada bandida, levaram os “meios de comunicação” em conluio com uma das piores direitas do mundo a iniciar nova onda de contestação à nossa política externa. Ela é equivocada e/ou voluntarista?

Para a oposição disposta a retomar o caminho da transformação do Brasil em uma república de bananas, pode ser.  Para nós que falamos em nome da nação popular , o buraco deve ser mais embaixo, procurando – por um lado – posicionar nossas relações exteriores dentro das necessidades do quinto maior país do mundo e uma das dez maiores economias do planeta e por outro reconhecendo que no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas no mundo e no Brasil, a política externa é um marco na transição de um sistema de relações internacionais baseado na anarquia da produção para outro, de caráter planejado. Mais: a própria política externa transforma-se num problema eminentemente financeiro. Deve ser lastreada financeiramente.

Da substituição de importações ao comércio exterior planejado

O governo Lula, com todos seus limites que – de minha parte – já cansei de repetir neste espaço, retomou um ciclo cristalizado no final da ditadura militar de cada vez maior independência de nossos assuntos externos, colocando – inclusive – os interesses de nossas empresas como a mola de nossa relação com o mundo. Foi assim que fomos o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola, antes da URSS. Reatamos, sob protestos norte-americanos, nossas relações com a China e aprofundamos nossos laços com o Oriente Médio numa sofisticada planificação de nosso comércio exterior que envolvia troca de automóveis brasileiros por petróleo iraquiano.

Naquele momento foi a coroação de uma nação que saiu da Idade Média em 1930 para adentrar a contemporaneidade em 1980. Na segunda metade da década de 1970, sob o governo Geisel, nosso processo de industrialização foi completado com a implantação de uma indústria mecânica pesada e consagrada com a inauguração do metrô mais moderno do mundo (em São Paulo) com vagões, trilhos, escadas rolantes e composições fabricadas no Brasil. Itaipu foi inaugurada com a utilização de cadeias produtivas em grande parte nacionais. Fechava-se o ciclo substitutivo de importações e iniciava-se uma era de transição a um capitalismo de Estado que surgia, nas elaborações leninistas de Ignácio Rangel, a partir de nossas relações com o exterior. Afinal, para um país periférico, onde comércio exterior constitui-se em variável central, é pelas relações exteriores que se avança civilizacionalmente, inclusive ao socialismo conforme o próprio Lênin vaticinava na década de 1920.

Internamente, esse salto se materializava com o surgimento de uma ampla rede bancária estatal e privada denunciando a luta que travamos, inclusive na atualidade da fusão entre o banco e a indústria dando contornos claros as duas faces da chamada “questão nacional”: o planejamento de nosso comércio exterior e a constituição de um amplo sistema de intermediação financeira com capacidade de sustentar nosso esforço de aprofundamento da revolução burguesa, o que por si só, demonstra o caráter antiimperialista do desenvolvimento na periferia, cuja luz no fim do túnel seria (e é) a transição ao socialismo pela via do “capitalismo de Estado”. Algo muito próximo do que propõe o PCdoB sob o certeiro rótulo de um “Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento”.

Sem grandes delongas ufanistas e com argumentos baseados unicamente na necessidade de defender esse (o nosso) governo e que sempre fazem com que a discussão se faça sobre parâmetros pequenos, o mais importante é situar a atual política dentro de um escopo histórico mais amplo, de continuidade com os próceres da Revolução de 1930, de um Estado capaz de percorrer, em 50 anos, um caminho que a Europa percorreu em 600 anos e descobriu petróleo em águas profundas. Enfim, nossa política externa é correta e em correspondência com as necessidades nacionais brasileiras de aprofundar nossas relações comerciais com a Ásia e a África, quebrar nossos laços externos de dependência comercial com um único mercado e mostrar ao mundo que podemos ter uma voz em concomitância com nosso tamanho territorial. Não existe nada de revolucionário nisso. O contrário sim é ultrarreacionário, pequeno, tacanho e com ares de discurso moderno, porém com o mesmo espírito preconizado na década de 1920 por nossos intelectuais financiados por um capital comercial decrépito e apeado do poder com a Revolução de 1930. Essa mentalidade levou a Argentina a entrar na Commonwealth na década de 1930 com a missão de continuar suprir commodities ao Reino Unido e o Brasil a romper com o capital comercial inglês no mesmo período. O Brasil virou potência industrial. E a Argentina?

O ônus da prova da justeza não deve recair sobre quem quer uma política externa para enfrentar os desafios do século XXI e sim sobre quem não quer enfrentar os desafios do presente século, porém se pautando com parâmetros consagrados no início do século passado. As posições tomadas na década de 1930 (nação ou submissão), inclusive a que levou a contrarrevolução de 1932, continuam ao leme e continuarão por muito tempo.

Haiti e Mercosul

Não gosto de perder meu precioso tempo comentando posições de extrema-esquerda. A mesa de minha residência está empilhada de livros e leituras a fazer e minha companheira não aguenta mais a bagunça em casa. Infelizmente, o tempo corre contra minha vontade (e até missão, por que não?) que consiste em desvelar caminhos ao futuro de nosso país. Algo muito complicado, concordo. Mas que tem de ser enfrentado com bases em uma política justa e uma teoria correta. Na verdade nem sou de levar a sério o que essa gente gosta de amplificar, mas é interessante o ponto de concordância com a (extrema) direita em alguns pontos, entre eles nossa presença no Haiti e o próprio Mercosul.

O Brasil não deveria estar no Haiti “assinando” embaixo de uma política imperialista. Afinal para muitos “intelectuais” entrincheirados nessas brincadeiras de debate sobre o futuro da humanidade e do Brasil, mas lembrando certas assembleias da II Internacional (os fóruns sociais mundiais da vida), nosso país pratica uma espécie de subimperialismo. O que é risível (nem vou me alongar em explicar o que é imperialismo em Lênin, seria demais da conta isso), pois o processo de integração não obedece a uma lógica ideológica, mas sim de necessidade histórica em que o país mais industrializado e rico torna-se o centro dinâmico do espraiamento de uma divisão regional e internacional do trabalho que pode (dentro dos marcos do planejamento do comércio exterior) beneficiar um punhado de países com a transferência de cadeias produtivas de menor valor agregado (como a China faz hoje com o Vietnã, por exemplo), exploração de recursos naturais como o dínamo financeiro de caráter industrializante e por ai vai. Perguntem ao nosso querido Evo Morales se ele não quer vender gás ao Brasil e se Hugo Chavez não perdeu noites de sono com as imposturas do senado brasileiro e a novela de admissão ou não da Venezuela no Mercosul. É a tal relação econômica e integracional da plena utilização dos fatores internos de produção e o conseqüente lançamento de bases à utilização de fatores externos de produção. Daí a necessidade do intercâmbio e do capitalismo de Estado. Fora disso não existe progresso nacional e social para ninguém. Nem ao Brasil, nem à Bolívia, aos irmãos paraguaios e muito menos ao Haiti.

Abrindo parênteses, já tive que me deparar com afirmações absurdas entre elas para quem a tal da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas) é maior que o Mercosul por conta de uma falsa aritmética do número de países-membro. Respondi perguntando qual país da ALBA tem siderurgia. A resposta aguardo até hoje, pois num primeiro momento a siderurgia é a base sob a qual se assenta qualquer país que aspire a independência. Já num segundo momento essa independência só pode ocorrer nos marcos da fusão do banco com a indústria. Mas a ALBA merece nosso respeito e solidariedade.

Por fim, o Brasil deveria sim estar no Haiti praticando um soft power bem brasileiro e o Mercosul deve avançar inclusive com sua integração financeira conforme proposto por nosso governo alguns anos atrás. Deveríamos condenar o golpe em Honduras alojando Manoel Zelaya em nossa embaixada sim. Qual a opinião de nossa mídia de aluguel quando os EUA financiavam massacres como o ocorrido na Indonésia ou na África do Sul do apartheid? De nosso lado, não estamos propondo pogrons, nem massacres. Nem interesses da plutocracia brasileira e sim o justo e o direito. A resposta deles é de que deveríamos invadir a Bolívia quando Morales colocou no devido lugar os interesses de seu povo.

Será que deveríamos invadir os EUA no momento em que unilateralmente abandonaram os marcos de Bretton Woods, passaram a emitir dólar a seu bel prazer e ferindo, consequentemente, os interesses nacionais brasileiros que sofreram um duro golpe com a elevação absurda da dívida externa (por conta da elevação dos juros praticados nos Estados Unidos), sangrando nossos recursos em nome dos interesses estratégicos do imperialismo?

Os problemas são de outra natureza

A fúria mercenária e oportunista dos EUA serviram sim, também, para expor os limites da atual política externa. Não faz mal constatar isso, se for do interesse nacional. Por exemplo, deveríamos estar prontos para enviar alguns bilhões de dólares para esta nação. Colocar nossas empresas em prontidão para enfrentar o desafio de reconstruir o país-irmão. Mas a bem da verdade, não dispomos desta quantia financeira, nossas grandes empresas estão a sair do Brasil não para concorrer com as multis estrangeiras e sim para fugir dos altos custos de produção originados por uma política monetária antinacional e antipopular (câmbio e juros, diga-se de passagem). Isso é fato e que deve ser enfrentado com a eleição de Dilma Roussef. O problema, da correlação de forças no Brasil, não se restringe sobre como e por onde podemos avançar e sim na real hipótese de regressão. E isso deve estar bem claro.

Uma política externa avançada e com traços de capitalismo de Estado não se sustenta em plena era da “globalização” e da financeirização fora de políticas internas que contemplem o desenvolvimento deste mesmo capitalismo de Estado. O que significa uma política cambial para proteger nossas empresas e dar liquidez ao conjunto econômico da nação. Deveria servir à reflexão não termos condições de levar às últimas conseqüências nossa presença no Haiti, mas – ao mesmo tempo – termos certeza do montante do orçamento que vai ser desviado para o pagamento em dia da dívida pública. É um despautério essa campanha orquestrada pela mídia (em conluio com o Banco Central) de se criar um clima de alta das taxas de juros, num momento em que o governo reage contra os males do câmbio com a introdução do IOF de 2% sobre a entrada de capitais no Brasil. Tudo isso desgasta e serve para minar as possibilidades de nossa política externa, pois política externa se faz com financiamento de exportações e importações. Política externa se faz com empresas nacionais protegidas e com crédito farto internamente para tocar seus projetos internos e externos, assim como política no sentido lato senso do termo só tem consequência se amparada por farta base material . Política externa se faz com uma Vale do Rio Doce tratando de viabilizar uma grande siderurgia nacional antes que a Mittal indiana e a Baosteel chinesa nos engula (Lula estava certo em pressionar a Vale à construção de um imenso pólo siderúrgico nacional). Política externa se faz com capitalismo de Estado, meus amigos.

Transição ao socialismo (no fundo é disso que estamos tratando quando se orquestra política externas avançadas) sem sistema financeiro nacional é arremedo de soluções de tipo “socialismo do século XXI” como alguns intelectuais latinoamericanos e brasileiros (que compõe uma plêiade de assessoria de Chavez) vem propondo; uma brincadeira. E capital financeiro nacional é sinônimo de capitalismo de Estado. Um capitalismo de Estado um dia sonhado por Lênin para sua Rússia arrasada.

Nesse caso o que significa o governo Lula?

Sempre critiquei pesadamente a política econômica do governo. Inclusive, de forma ácida. O que não significa perceber o grande avanço que ele representou na re-elevação de nosso poderio internacional, de aumento da autoestima do povo e do breque dado ao processo criminoso de privatizações e de proscrição dos direitos dos trabalhadores. Nunca me ufanei deste governo, pois sei das grandes possibilidades do Brasil. Não acho Lula um estadista, mas é um presidente pelos menos umas 500 vezes melhor que FHC. O Brasil com Lula voltou a trilhar um caminho de encontro consigo mesmo, inclusive na política externa e isso deve ser louvável. A volta ao passado incomoda, dá medo…

Por tudo isso exposto sobre os limites colocados perante os rumos de nossa nação (e de nossa política externa justa e acertada) é que creio ser os dois mandatos de Lula apenas a transição para algo mais avançado. Esse algo avançado só pode ser a nacionalista Dilma Roussef que pelo que se percebe não leva jeito para o tal João Grilo de “O Auto da Compadecida”. Precisamos de mais 20 anos para colocar nosso país no eixo. A batalha é muito dura, mas um chega pra lá nessa turma do Banco Central será a pedra de mote deste processo. Sem isso não poderemos dar conseqüências práticas ao nosso projeto de nação. Eis o problema de nosso país. Eis o problema de nossa política externa.

Mas a vontade não está acima das leis da natureza.

Felizmente ou infelizmente…

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