“A mais longa duração da juventude” nas palavras de Memélia Moreira

Memélia Moreira revela a força poética e política do romance que transforma a memória da ditadura em amor, fome e resistência

Nesta semana, diante de acontecimentos graves que acometem amigos e amigas, revi as palavras da jornalista e escritora Memélia Moreira sobre o romance “A mais longa duração da juventude”.  Memélia trabalhou muitos anos na Folha de São Paulo, publicou reportagens fundamentais sobre o massacre de povos indígenas. E mais não devo falar, porque as palavras de Memélia falam melhor que esta brevíssima apresentação.  

O romance a mais longa duração da juventude 

Memélia Moreira 

Depois de 50 anos daqueles tempos horríveis da ditadura, “A Mais Longa Duração da Juventude” possui páginas que fazem reviver passado-presente-futuro como se não houvesse hiatos.

Os personagens tinham fome revolucionária. De transformar o mundo, de eliminar as injustiças sociais, de evitar que nossa sociedade caísse no abismo da barbárie. E essa fome revolucionária lhes inibia ao ponto de lhes deixar com fome de paixões. Elas eram interditas, clandestinas, quase criminosas, porque na moral revolucionária vigente, deixar que a paixão amorosa explodisse significava “desvio ideológico”.

 “A Mais Longa Duração da Juventude” pode ser dividido em dois eixos, pelas cenas que agrediram uma geração e pelo amor à luta que se espalha em todas as páginas.  

O livro é um suceder de paixões. Paixão na sua essência do apaixonar-se. Paixão que se desdobra no sentido mais amplo, o do amor. O amor das imensidões. Amor ao povo, e aos infinitos brasis com os quais convivemos mesmo que nos pareça invisível.  Da paixão, vou ao segundo eixo. O da fome.  Fome pela transformação de uma sociedade injusta; fome da comida que era pouca e assim mesmo dividida e, principalmente, a fome de viver toda uma vida em um momento. Entre a Fome e a paixão, incluo a alma de um poeta. O autor é poeta. Mesmo na descrição dos momentos mais trágicos a poesia está presente. O seu “Eu” profundo de poesia, um eu que também se nega quando ele tenta ignorar os mistérios da vida, entre eles, os pressentimentos que o perseguem até na mesa de um bar do pátio de São Pedro naquela cidade do Recife, palco das resistências narradas em “A Mais Longa Duração da Juventude”. Um eu que filosofa e que se aproximando dos 70 anos, é aquele mesmo menino magro, que se considerava feio no passado, mas que agora descobre ser uma vida intensa dedicada à luta a fonte da sua  beleza.

Aqueles jovens carregavam no peito o ardor revolucionário; daqueles pós-adolescentes que eram feridos de morte quando cada companheiro caía nas mãos dos implacáveis inimigos, entre eles Cabo Anselmo e o delegado Sérgio Fleury. E mais, que produziria um filme cm inspirações de Jean-Luc Godard dos anos 60/70 e Fellini. A viagem daqueles combatentes a Porto de Galinhas é felliniana. Mais especificamente, uma “Dolce Vita” de uma juventude que criava situações que poderiam subverter a perversa ordem social vigente e cujas armas eram o sonho, a palavra, uma arma talvez enferrujada e um simples mimeógráfo guardado sob cuidados. Um dos mais revolucionários instrumentos daquela geração.

Há personagens para sempre inesquecíveis como “Vargas” (leia com um “R” carregado como pronunciam os de língua espanhola), “Gordo”, uma verdadeira enciclopédia musical e Luiz do Carmo. Há muitos outros. Zacarelli, por exemplo, Selene, direção da UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas), Torquato de Moura, “guardião das virtudes subversivas”, Narinha, Marx, sim, Marx e Lênin, filhos de um pai comunista, já velho e o primeiro a sentir o cheiro da infâmia que exalava do Cabo Anselmo, Zé Batráquio, e ela. Refiro-me a Soledad Barrett, uma quase-menina que, dentre todos que sucumbiram naqueles anos tristes foi a mais traída. Traída pela paixão. A mulher bonita, forte, marcada em lutas pelo nosso continente, musa do poeta Mário Benedetti, apaixonou-se por um homem abjeto chamado “cabo anselmo” (com letra minúscula mesmo porque os infames não merecem ser maiúsculos em nenhum momento). Se em “Soledad no Recife” ele apenas abria a cortina da paixão por Soledad,  nesse segundo de sua quase-autobiografia, ele a escancara. Soledad foi e será sempre o grande amor de Urariano. Amor confessado com todas as letras quase no final de “A mais Longa Duração da Juventude”, quando diz, “A mulher que em legítimo platonismo eu amei. Amo.”. O legítimo platonismo se transformou no amor eterno, porque agora Soledad vive na eternidade, na imortalidade.

Há grandes e inesquecíveis momentos. Muitos, principalmente aqueles nos quais os jovens revolucionários, militantes de organizações armadas de esquerda se reuniam num bar e discutiam Música, Literatura e o lindo horizonte pelo qual lutam, a pátria socialista. Os dois momentos que mais me emocionaram foram a viagem dos revolucionários do Recife a Porto de Galinhas, dentro de uma Vemaguete, às quatro da manhã de um sábado, sem sequer conhecerem o caminho entre as duas cidades e passando riscos reais de morrerem num acidente, porque Alberto, o único que dirigia, dormiu várias vezes ao volante, e tudo porque, “Pasárgada não podia esperar…”

O outro momento que me marcou e, aqui, pela tragédia, é também uma viagem. Talvez a última antes de ser atingida pelas balas da ditadura. A viagem de Vargas no ônibus em que embarcou depois de dizer à advogada Gardênia que era um homem morto, que já estava sendo caçado pelos homens de ouro do delegado Fleury e pelo infame cabo Anselmo. Ela o aconselha a fugir, mas ele rechaça a ideia para não abandonar “Nelinha”, sua mulher que já era mãe da menina Krupskaia. Ah, quanta paixão existe na alma revolucionária!. Entra no ônibus no ponto da ponte Duarte Coelho e segue pela Avenida Guararapes, Capibaribe, Largo da Paz, Afogados, Ponte do Motocolombó num monólogo com sua consciência, com a certeza da morte, com o desespero de não poder salvar sua pequena família. Esse talvez seja o mais dramático momento do livro. “Vargas” foi preso, morto e carregado para a Chácara São Bento onde os torturadores de Fleury o posicionaram ao lado de Soledad, alterando a cena do crime. Nenhum dos mortos da Chacina da Chácara São Bento, em janeiro de 1973, morreu naquele lugar.

Os fatos são todos reais, mas os nomes são fictícios. Ou, como diríamos na época, todos codinomes.

Convido a quem me lê nesse momento a ligar um aparelho que toque música.Youtube, Ipod, CDPlayer, o que for, até mesmo uma vitrola, toca-discos ou um gravador com as já jurássicas fitas K-7. Não precisa pôr o som no último volume. Deixe apenas o suficiente para não interromper a leitura do livro. E, do começo ao fim das 320 páginas de “A Mais Longa Duração da Juventude” ouça Ella Fitzgerald. Sugiro que “I Wonder Why” seja a primeira música. Ou então, ouçam “Dream, a Little Dream of Me”. Vamos, me dê sua mão e vamos passear pelo Recife, aquela linda cidade do Recife que se espelha sobre um rio cruzado pelas pontes que, de tantas, fazem inveja a Veneza. 

“Quando reflito o que vi, noto que nossa vida começa a partir de um instante fora do nascimento. Ela começa naquele minuto que define nossos dias, que ilumina o passado, presente e futuro. O instante definidor como a linha da vida, na palma da mão lida por uma cartomante que não esperávamos”.

Essas são as três primeiras frases do livro do escritor (mais que isso, poeta) Urariano Mota. E a partir dessa frase pode-se dizer que a vida desse homem começou no instante em que ele inicia a luta revolucionária para derrubar a ditadura que se instalara no Brasil, quando ele atingia a puberdade. E dá seus primeiros passos de consciência um pouco mais tarde.

E ele solta aquela dor antiga dizendo, “quero ter Ella, acariciar sua capa (que pobreza, meu Deus, dói até a lembrança neste instante. Quero antegozar a sua voz, a doçura que apenas ouvi por segundos e me derrubou num encanto…”

I wonder why. Urariano ainda busca as respostas para essa pergunta sussurrada na voz de mel de Ella Fitzgerald.

Urariano foi de muitas paixões. Não sei quantas. Mas em seu leque, apenas uma das peças não estava integrada à resistência brasileira e é justamente a figura de Ella Fitzgerald. 

Não havia dinheiro nos bolsos ou nas contas bancárias dos heróis da resistência. Mas eles tinham a consciência de que “quem possui o que sonha não é pobre. Nós nos alimentávamos do sonho uns aos outros”.

Os trechos de “A Mais Longa Duração da Juventude” onde se expõem as carências do mínimo derrubam um mito. A Direita na sua incansável campanha para desqualificar a luta que nos concederia um mínimo de Democracia espalhava a ideia de que os guerrilheiros do Brasil eram todos “fihinhos de papai”, filhotes da burguesia. NÃO e NÃO. Havia pessoas pobres, operários, desempregados, professores mal pagos, mas incansáveis, trabalhadores de um barracão coberto de zinco que estavam imersos na luta política e na luta pela sobrevivência.

E essa verdade aprendida no livro de Urariano Mota tem não um gosto de vingança contra os ditadores e seus capatazes, mas uma esperança de que um dia, os pobres, os miseráveis tomem, retomem as rédeas de um mundo com a qual ainda sonham as gerações socialistas. 

Eles eram assim, os guerrilheiros, aqueles pós-adolescentes que se preparavam com ardor para o momento de pegar nas armas, de sacrificar até à morte pela derrubada de uma ditadura e construir uma pátria socialista.

Os fatos estão narrados como se fossem um jorro, um desabafo. Não faltam no livro observações com característica de autocrítica. Além dos fatos da triste História de um país que entrou em decadência antes de chegar à maturidade, Urariano Mota nos concede reflexões de quem sabe que ainda há mais a questionar e responder. De todas as reflexões, transcrevo esta: 

“A vida lembra a intensidade de uma canção. Na reconstrução pela minha memória, a vida é intensa, profunda e breve. Mais próximo do que desejo dizer: a memória da vida é uma brevidade que não termina. Há um ponto e uma repetição indefinida. Melhor, não um ponto, são reticências…”

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