A memória dos peixes

*

Tenho no cantinho da casa onde leio e escrevo vários pedaços do mundo. Livros que são muitas vidas, paisagens, territórios e gentes. A qualquer momento povoam com vidas meu retângulo com janela para um restante verde. Há certa desordem, que é minha forma de organizar. Papéis, canetas, lembranças de viagens, retratos e discos. Uns de vinil que já não cantam e outros que chamam cedês, que às vezes ouço. Sobre a estante, os chapéus. Os que já andaram comigo, suados e guardados com sóis e serenos. Outros, que não usei. São presentes, ou compras afetivas, como este panamá Montecristi com o cheiro da “paja toquilla” e o cuidado da feitura manual no Equador. Estou poupando-o de ser usado, como um desejo de que não se acabe. Fica para as ocasiões especiais. Enquanto isso, vou com os que já têm feitio de minha cabeça. São caminhadas e sombras companheiras. Em frente, tenho um aquário com alguns peixes. Havia uma parelha de beijadores, uns peixinhos claros, quase transparentes, que passam a maior parte do tempo tocando as bocas, simulando beijos. Daí o nome. Por alguma diferença deram de se estranhar. Dos beijos foram à liça, perseguições, mordiscadas e golpes. Um deles, cujo sexo nunca intuí, acabou morrendo. Para não deixar o valentão homófobo (quem sabe?) solitário, adquiri seis pequenos acarás-bandeira. O grupo está pacificado. Posso vê-los, enquanto escrevo, no vazio do ângulo esquerdo da tela do computador. Movimentam-se. Desfrutam do pequeno espaço como se nadassem um rio. Vão coleando entre as folhas de uma planta aquática muito verde, que demonstra um inusitado vigor. Cresce sempre, mesmo neste mundo parco de nutrientes. Apenas luz, água e pedras. Sustentam-se sem precisar de tantas coisas, como nós humanos. De vez em quando me assalta certo remorso, de manter esses pequenos seres da natureza encarcerados na parca ilusão de universo do aquário. Seria natural e politicamente correto ter os peixinhos, filhos dos poços, das correntes nesta forma de prisão de luxo para minorar um pouco minha distância das paisagens ainda livres da impudicícia humana? E as plantas? Não sentiriam falta de seus endereços originais nos lagos, rios ou curixos? Os estudiosos me tranqüilizaram. Afastaram um pouco minhas dúvidas com suas certezas. Iludo-me com suas explicações, pois são eles os entendidos em aquários, peixes, plantas. Dizem que peixes têm uma memória muito curta. Coisa de flash! De vupt! Em segundos esquecem o que viram. Sua vida é um constante presente. O aquário nunca envelhece. Cada volta é uma nova paisagem, um novo lance de aventura vital. Uma bocadinha de alimento, o espanto com novo viés de pedra ou folha. Não padecem porque não têm lembranças. O que dói nos humanos é recordar. E não poder ser inteiramente presente. Consolei-me com a possível felicidade dos peixes. As plantas não me trazem conflitos éticos. O vegetal é o reino feito para a predação. Conforta-me e que os castos e espirituais abstêmios das carnes e de outros produtos animais não têm pudor em devorar os grãos, as raízes, os frutos e as folhas. Estão certos de que assim vivem em paz e harmonia com a natureza.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor