A mudança que prefiro não experimentar

"Agora deu!", diria meu querido amigo Marquinhos, de Aracaju. Acabo de ler numa revista de bordo da Gol que devo abrir mão de algo que até hoje julguei precioso e muito tem me ajudado na vida: aquele automatismo natural, que me faz suportar a rotina abrindo espaço para o raciocínio criativo.

Por exemplo: saio de casa dirigindo o carro, levo Luci a Olinda e chego à garagem da Prefeitura sem dar a menor atenção aos muitos movimentos que faço nesse trajeto. Desde ligar o motor, descer a rampa da garagem do meu prédio, percorrer o caminho até a Marim dos Caetés e retornar rumo ao Recife. Quantas vezes freei o carro, parei diante de semáforos no vermelho, ultrapassei veículos modorrentos, contornei motos desnorteadas, não saberei dizer nunca. Faço tudo "no automático", com a decisiva ajuda da área extrapiramidal do meu sistema nervoso central. Como nos versos de Manoel de Barros, “repetir repetir — até ficar diferente./Repetir é um dom do estilo.”

Tudo bem? Parece que não, segundo o dito artigo, assinado por uma especialista em ioga, Márcia de Luca. Ao contrário do que sempre imaginei, essa rotina automatizada não me deixa inteiramente livre para a criatividade no trabalho, na luta política e no amor. Não, diz ela; porque perco estímulos que poderia obter se desse atenção ao que faço rotineiramente e, mais ainda, se rompesse com o que já está estabelecido. Mudar o trajeto costumeiro com o carro, subir escadas até o meu apartamento, ao invés de tomar o elevador e outras coisas mais. Quem sabe usar o garfo com a mão esquerda, tomar banho frio ao invés de morno, ler de trás pra frente, trocar o suco matinal por uma canja de galinha, interromper minhas postagens nas redes sociais, inverter a ordem de leitura dos jornais diários, ler relatórios e documentos oficiais em casa e, no trabalho, romance, contos e poesia, sentar nas cadeiras mais próximas da tela no cinema, abrindo mão do conforto da distância ideal, caminhar na Jaqueira na contramão da maioria (como alguns fazem), botar água de coco no uísque (arre!), trocar a boa MPB e o jaz pelo rock da pesada ou o forró estilizado… Enfim, inverter a minha ordem natural das coisas em favor da criatividade supostamente perdida.

Será? Estimo que não. Porque depois de décadas treinado para não perder tempo com o rotineiro e ganhar todo o tempo possível para a luta, o sonho e o prazer, confesso minha absoluta incompetência para refazer rotinas sem que gaste energia e neurônios no aprendizado de… novas rotinas!

Pois é, amigos, podem me chamar de conservador e acomodado, mas não seguirei as recomendações da ilustre especialista em ioga e criatividade, justamente para não cair na mesmice na luta e no amor – que exigem tempo para a reinvenção cotidiana – e não perder a alegria diária de contemplar o amanhecer como único, original e surpreendente.

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