A mulher que fala

Não é surpresa que a mulher que fala incomoda, porque falar é travar uma batalha de poder

Por que as mulheres são minoria nos espaços de poder, se são metade da população mundial? Para compreender este fenômeno de desigualdade é preciso resgatar a própria definição de poder, e consequentemente, de seus espaços. Para a teoria política poder é a capacidade de determinar o comportamento de outrem, a possibilidade de produzir efeito sobre um indivíduo ou grupo. O que a História conta é que os detentores desta habilidade geralmente são homens, de uma determinada classe e cor, com determinadas características sociais consideradas importantes em seu tempo. E os espaços de poder são exatamente ocupados por estes homens, em especial os de poder político materializados através das instituições. É por isso que os homens são maioria nas instâncias que formam o Estado, já que este é a manifestação primeira e última do poder político tradicional. 

Pois bem, a desigualdade de poder político tem uma relação direta com o silenciamento das mulheres, porque quase sempre está atrelado ou é sustentado por outras formas de poder, como o econômico, e existe primordialmente a partir do discurso. O lugar das mulheres na História da humanidade tem sido de exploração e silêncio. Desde a Grécia Antiga,  berço da civilização ocidental, as mulheres são consideradas criaturas segundas, o segundo sexo, como disse Simone de Beauvoir, cidadãs de segunda classe, como escreveu Buchi Emecheta. 

Mary Beard bem demarca em Mulheres e Poder: Um Manifesto (fica aqui uma boa recomendação de livro às minhas leitoras), que o primeiro registro de um homem mandando uma mulher calar a boca talvez seja a cena em A Odisséia na qual Telêmaco, filho de Ulisses, ordena que sua mãe, Penélope, retorne aos seus aposentos e se cale, pois “discursos são coisas de homens, de todos os homens, e meu, mais que de qualquer outro, pois meu é o poder nesta casa”. Será que estamos muito longe do lugar de Penélope? Dois mil e oitocentos anos se passaram desde quando Homero contou essa história e apesar dos avanços, apesar das batalhas e das tantas mulheres que não obedeceram, ainda nos mandam calar a boca di-a-ri-a-men-te. 

Os sentidos de se negar a palavra a uma mulher são profundos e para mergulhar nisso podemos beber do que Hannah Arendt explicou em A Condição Humana: da sociedade política grega decorre a compreensão de que “quase todas as ações políticas na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são realmente realizadas por meio de palavras (…) Somente a pura violência é muda”. Ela ainda aponta que a distinção da esfera pública como espaço dos homens e a esfera privada como espaço das mulheres advém da ideia de que para participar da polis era necessário dominar o oikos, aqueles que superaram as necessidades humanas poderiam viver na sociedade política entre seus iguais. Mulheres, crianças e escravos eram reféns da própria condição pois incapazes de autonomia e portanto, liberdade. 

Se poder político é o exercício do discurso em lugar da violência e sua relação com o Estado está justamente no fato de que este detém o monopólio do poder da força, como categorizou Weber, às mulheres não cabe o lugar de falar. Tão engenhosa é esta estrutura de silenciamento que a conversa entre mulheres passou a ter sentidos negativos, é o que nos conta Silvia Federici em Mulheres e Caça às Bruxas. Inicialmente a palavra gossip, que hoje é traduzida como fofoca “se referia às companheiras do parto, amigas mulheres, denotando os laços a unir mulheres na sociedade inglesa pré-moderna”. Com o avançar da caça às bruxas e da deterioração da condição de vida das mulheres, por volta do século XVII houve uma mudança de significado e gossip passou a designar conversas  fúteis, “a conversa informal, geralmente danosa às pessoas que servem de assunto (…) e são as mulheres que fofocam por não terem nada melhor a fazer e por terem menos acesso ao conhecimento real, à informação, e por uma inabilidade estrutural de construir discursos racionais, de base factual”. 

Portanto, não é surpresa que a mulher que fala incomoda, porque falar é travar uma batalha de poder. A voz de uma mulher será desqualificada porque sua presença nos espaços de disputa discursiva (sejam eles físicos ou virtuais) causa desconforto naqueles que sempre ocuparam este lugar de dizer o que pensam, de serem ouvidos como sujeitos. As estratégias de silenciamento são inúmeras e antigas: vão desmerecer a mulher que fala, apontar incoerências ou demandar coerência total, atribuir comportamentos socialmente condenáveis, invalidar o que se fala pelo modo pelo qual se fala. A essência destas reações é a mesma: você não é digna da palavra. 

Diante de todos estes apontamentos, o que peço às mulheres que me lêem é: falem bastante, sejam chatas, histéricas, inadequadas, exaltadas, falem, falem sim, falem sempre. Falem a plenos pulmões o que pensam e principalmente o que sentem. Falem por todas nós que fomos um dia caladas, falem pelos nossos silêncios que pesam há milênios.

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