A pandemia é política
Em mais de um ano de pandemia, o governo tomou decisões que cobram vidas de milhares de brasileiros. A única saída para mudanças no país é por meio da política.
Publicado 17/03/2021 16:06
O Brasil registrou mais de 280 mil mortes de Covid-19 na terça-feira (16) é provável que o número cresça nos próximos dias. O sentimento de impotência parece inevitável e a naturalização das perdas, irresistível. Mas venho propor uso estratégico das emoções, organização da dor para não sucumbirmos.
Para reversão desse quadro, dependemos da circulação de informações confiáveis, da ampla adoção de condutas sanitárias amparadas pela ciência e de uma profunda reflexão política a respeito da gestão da pandemia.
O Brasil liderou o ranking de casos de Covid-19 e óbitos provocados pela doença nesta semana. As causas que nos trouxeram até aqui não são apenas de ordem natural, mas política. O que nos fragiliza em meio à pandemia decorre de tomadas de decisão de governo, eram evitáveis.
Desde que o vírus começou a circular, cientistas recomendam as seguintes medidas: isolamento social, com apelo ao lockdown quando possível, e célere aplicação de vacinas. O isolamento reduz a velocidade de contágio e a consequente superlotação de leitos, evitando a falência dos sistemas de saúde. É a medida que mais salva vidas na falta de vacinas. Com o advento dos imunizantes, o distanciamento continua sendo importante até que a cobertura vacinal seja concluída.
Em teoria, a gestão da pandemia deveria seguir esse roteiro, mas a prática tem sido outra. Ora, no Brasil afundado em crise econômica, com investimentos públicos limitados pelo teto de gastos, a dificuldade para ofertar auxílio emergencial a trabalhadores em isolamento parece ser um debate plausível. Mas não quero entrar nesta questão. Vou direto à vacina.
Nesta semana foram divulgados relatórios do Governo Trump que comprovam a pressão diplomática dos Estados Unidos para que o Brasil não adquirisse a vacina russa. Evitar uma aproximação entre nosso país e a Rússia foi considerado mais importante do que a salvaguarda de milhares de vidas.
Não parece coincidência que o governo submisso à política externa estadunidense seja o mesmo que recusou a oferta de vacinas da britânica Pfizer em agosto passado, nos deixando no final da fila mundial para aquisição de imunizantes.
Também é o mesmo governo que deliberatamente promoveu fake news sobre “tratamento precoce”, em uma campanha tão intensa e quanto bem articulada, envolvendo profissionais de saúde de todo o país para a prescrição de cloroquina e ivermectina, apesar dos testes comprovando a ineficácia dos medicamentos na atuação contra a Covid-19.
Tão logo doou 2 milhões de doses de cloroquina ao Brasil no último ano, o Governo Trump revogou o uso da medicação no próprio país, em irrefutável desprezo ao protocolo sanitário recomendado a outras federações. O Governo Bolsonaro, por outro lado, direcionou a maior parte da medicação para o Nordeste, mesma região onde terá de enfrentar a maior taxa de rejeição eleitoral, numa possível corrida para reeleição à presidência.
O Governo Federal só ensaiou uma mudança de conduta nos últimos dias, após a recepção positiva da opinião pública ao discurso do ex-presidente Lula, considerado elegível após decisão do STF de anular as condenações promovidas pela Operação Lava Jato.
Além da maior adesão ao uso de máscaras em público, a equipe do Governo Bolsonaro tratou de responsabilizar exclusivamente o ministro da saúde, provocando a substituição de Eduardo Pazuello por Marcelo Queiroga, em uma toada de que Pazuello seguiu a cartilha negacionista do presidente, quando deveria ter conduzido a pasta de forma técnica, buscando apoio na base ponderada do Governo Federal.
Esse mesmo movimento de xadrez já foi usado outras vezes pelo governo para gerir crises, e assim vamos para o quarto ministro da saúde no segundo ano da pandemia. As falas iniciais de Queiroga denotam obediência, e não enfrentamento à Bolsonaro, em um claro indício de que a troca foi seis por meia dúzia.
É sintomático que o governo tente emplacar a narrativa de que o novo ministro será técnico, e não ideológico, quando técnica e ideologia caminham juntas. Fica cada vez mais claro que a gestão da pandemia no Governo Bolsonaro opera dentro de um cálculo político muito obtuso, que exclui a maioria da população. Na calculadora de Bolsonaro, só tem conta de subtrair, seja na economia, seja na saúde. O país perde dinheiro, as famílias perdem vidas.
Não há como vencer o coronavírus de forma técnica, desapartada da política. A gestão da pandemia ocorre por meio das instituições, são as decisões dos gabinetes que mais impactam na vida de milhares de brasileiros, ainda que queiram naturalizar a tragédia. Qualquer saída será pela via política, de forma a pressionar o governo, por força das lideranças de oposição e atuação da sociedade civil.
Não há outro caminho para soerguer o país que não seja a política. Foi preciso eleger um governo de discurso antipolítico para chegarmos a essa conclusão da forma mais dramática possível, em meio a uma pandemia mortal.