A pintura negra de Jeff Alan

“Era como se o Brasil real subisse às luzes”, diz Urariano Mota sobre a exposição “Comigo Ninguém Pode”

Artista visual Jeff Alan, da exposição “Comigo Ninguém Pode - A Pintura de Jeff Alan” | Foto: Shilton Araújo

Estive presente à abertura da exposição “Comigo Ninguém Pode“ do grande artista Jeff Allan, na Caixa Cultural do Recife. Ali, ela continua em cartaz até janeiro. No catálogo, somos informados de que Jeff Alan é um artista recifense em franca ascensão, e suas obras carregadas de significados  refletem as vivências e a riqueza cultural das comunidades negras e periféricas do Recife.

No dia da abertura, as pessoas de pele mais clara, os brancos do Brasil, eram franca minoria. Era como se o Brasil real subisse às luzes. No lugar, havia tanta gente, que fiquei próximo à porta que dá para o cais, mas de lá não pude ver a mesa onde falavam o curador Bruno Albertim e o artista Jeff Alan, nem mesmo consegui ouvi-los. O que quer dizer: sucesso absoluto do encontro de pessoas com a arte no Recife. Ali, houve também uma alegria que circulava, em uma comunhão de todos periféricos e centrais da cidade. A razão, vocês podem ver:

e aqui

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É impressionante que um artista de tão alto nível tenha recebido esta promoção em reportagem da Globo Nordeste: “Grafiteiro daltônico ganha fama internacional retratando moradores de rua no Recife”. Assista aqui.

Usando a sua marca registrada, que são traços firmes e sobrepostos, Jefferson criou imagens de pessoas anônimas, moradores de ruas, em homenagem à resistência e solidariedade”.

Mas reparem, por favor. Se o artista é daltônico, a mídia é míope. Ninguém promove esse artista ou vai a uma exposição de Jeff Alan para “dar uma força”, ou para ajudar um aspirante à pintura. Meu deus dos céus dos ateus, ele é um artista magnífico, de sensibilidade e olho crítico para o que se esconde ou se oculta no cotidiano das pessoas.

Aos 8 anos, Ednaldo é o modelo do quadro acima.

Aos 73, o escritor vê um modelo.

Entendam. A pintura de Jeff Alan é também manifestação de sentimentos antirracistas, de uma onda de solidariedade que a invade. Mas somente tais  necessários sentimentos não fazem uma arte digna de humanidade. Ao mesmo tempo, sem tais sentimentos a pintura de Jeff Alan não existe. Seria qualquer coisa como alma a vagar no purgatório, alma sem rosto, sem inteligência, sem mais nada. Alma vazia. Isso significa: o artista possui a sua identidade no que ele expressa. E o que ele expressa vai além dos retratados, pois a vida não é só isso o que se vê, como no samba de Paulinho da Viola. Ver a sua pintura, ver o seu povo pintado é uma felicidade, uma promessa de futuro para todo menino Ednaldo. 

Nas palavras do curador, escritor e antropólogo Bruno Albertim:

“Nesta terra de doce açúcar, os pretos e pretas não tiveram acesso a preservar os rostos de seus antepassados. Precisaram construir uma ancestralidade mais coletiva, não individualizada, arquétipos do Atlântico do não-retorno no lugar das feições de avós e avôs para seus prantos. Uma saudade permanente, erguida sem rostos. Um choro por todos, não pelo parente, cuja face sumiu da história,

A pintura de Jeff Alan não é o olho da casa-grande quem, ‘generosamente’, procura enxergar os por ela subalternizados. Guarde-se a alteridade perversa.

Para a pintura de suas figuras, Jeff Allan se vale da observação íntima. Muitas vezes, mais novo, sentava-se numa das mesas do Caldinho do Beco, estabelecimento de seu tio Albérico Mendes da Silva, irmão de sua mãe, Lucilene, apenas para ver como o ir e vir naquele bairro ia ditando as formas de interação e vivências sociais. As idas e vindas da escola; o voltar do trabalho; as pausas para as conversas descompromissadas. No Barro, bairro recifense com pouco mais de 30 mil habitantes.

Ao trazer seus contemporâneos, quase sempre tão periféricos porque pretos, quase sempre pretos porque periféricos, para o centro não apenas da composição, mas a lugares sociais historicamente negados, Jeff Alan e sua pintura nos informam: Comigo, ninguém pode!”.

Com a sua pintura, Jeff Alan faz uma paráfrase de Cícero Dias; eu vi o mundo, ele começava na periferia do Recife. A terra para sua arte é de todo o mundo, sem fronteiras de raça ou lugar.

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