A política e literatura em Vargas Llosa

Apesar de seu conservadorismo político, Vargas Llosa deixou uma obra literária inovadora e crítica, que retratou com maestria as contradições da sociedade latino-americana

Foto: Daniele Devoti/Flickr

Sou, definitivamente, um admirador do escritor peruano Mário Margas Llosa, que morreu no último 13 de abril, em Lima, aos 89 anos. Considero sua vasta obra de ficção um portento literário que, em vários aspectos, supera a do grande Gabriel Garcia Marquez. Em torno de sua morte, proliferaram na mídia as mais diversas e contraditórias interpretações a respeito da trajetória literária do peruano e suas posições políticas.

Llosa, no início dos anos 1960, foi admirador da revolução cubana e de Fidel Castro. Mais tarde afastou-se em direção à direita, tornando-se ardoroso defensor do liberalismo, até marchar por simpatias pela extrema direita. Escreveu artigos e ensaios fundamentando seus posicionamentos. Apoiou Jair Bolsonaro no Brasil, Keiko Fugimori no Peru, Maurício Macri na Argentina, só para ficar em exemplos mais próximos.

Ao mesmo tempo, produziu uma obra que não guarda qualquer semelhança com deu alinhamento político. Foi um inovador, sobretudo em seus primeiros romances (“A cidade e os cachorros”, “Casa Verde”, “Conversa na Catedral”, “Lituma nos Andes”), com uma narrativa inovadora, sobretudo pelos diálogos intercalados, pelas disposições do tempo e articulação de histórias paralelas. Foi amplo, universal, registrando com mestria um largo painel da sociedade peruana, particularmente da segunda metade do século XX, submetida à exploração externa, a golpes militares e regimes autoritários. E o fez com precisão honestidade, sem qualquer interferência das suas ideias políticas. Seus livros “A festa do Bode” e “Tempos ásperos”, por exemplo, contém vigorosa denúncia das ditaduras centro americanas, todas com apoio dos Estados Unidos. Em “O sonho do celta”, faz uma crítica acerba ao colonialismo belga na África e britânico na América do Sul.

Ainda assim, em alguns setores progressistas, há quem manifeste desprezo pela obra de Llosa por conta dos seus posicionamentos políticos à direita. Talvez também torçam o nariz pela obra do grande escritor argentino Jorge Luís Borges por ele ter sido um anti peronista radical que nunca escondeu seu ódio ao comunismo, razão pela qual sempre foi simpático às ditaduras argentinas, incluindo a mais truculenta, liderada pelo general Jorge Rafael Videla, a quem Borges considerava “um cavalheiro”. Quem sabe também refutem outro grande, Honoré de Balzac (que com Flaubert e Stendhal inaugurou o romance realista), autor da monumental Comédia Humana, que reuniu nada menos que 86 obras, entre romances e novelas que o crítico Paulo Rónai considerou “um espelho de todo o século 19”. É que o francês era, do ponto de vista político, claramente reacionário, monarquista e católico. No entanto, era o preferido de Marx e Engels. Para o historiador José Carlos Ruy, no artigo “O preferido de Marx”, “o exemplo de Balzac toca num dos eixos mais importantes da discussão literária de nossos dias: a relação entre arte e política. Sua obra é, inclusive, um modelo prático da resolução dessa questão cardeal da produção artística. Esta aparente contradição – escritor reacionário e obra revolucionária – fica resolvida quando prestamos atenção ao método usado por Balzac em sua produção literária”.

“Este método, parcialmente descrito no prefácio da Comédia Humana, implica fundamentalmente na observação e na transcrição fiel dos acontecimentos; o romance, diz Balzac, nada seria ‘se não fosse verdadeiro nos pormenores’. Mas isto não é tudo: o artista deve ainda ‘surpreender o sentido oculto nessa imensa reunião de tipos, de paixões e de acontecimentos’. Finalmente, é ‘preciso meditar sobre os princípios naturais e ver em que as sociedades se afastam ou se aproximam da regra eterna do verdadeiro, do belo’. Balzac conclui: ‘assim descrita, a sociedade devia carregar consigo a razão de seu movimento’. E é a apreensão realista e implacável deste movimento – do capitalismo triunfante. Do dinheiro elevado como o elemento primário das relações entre os homens – que dá o sentido revolucionário à obra de Balzac., que já foi considerara como correspondente, na literatura, a O Capital de Karl Marx”.

Assim, injustiça e ignorância a um só tempo é fazer pouco da obra romanesca de Mário Vargas Llosa por conta do seu reacionarismo, digamos, balzaquiano. Condenemos seu pensamento neoliberal, suas concessões à extrema-direita e, ao mesmo tempo, louvemos sua magistral obra literária, composta por 20 romances e encerrada em 2023 com “Decido a você meu silêncio”.

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