“A Prova”:Luta por um ideal

Baseado em peça teatral  de David Auburn, filme do inglês John Madden discute a necessidade de se manter o ideal nos tempos atuais

Muitas razões nos levam ao cinema. Pode ser uma informação, o êxito do filme, o diretor, o tema ou simplesmente os atores. No caso de “A Prova”, do inglês John Madden (“Shakespeare Apaixonado”) o que nos faz entrar no cinema são os intérpretes: Gwynet Paltrow, Anthony Hopkins e Jake Gyllenhaall. Não que brilhem nas telas como Tom Cruise ou Júlia Roberts, pois, embora os dois primeiros tenham recebido o Oscar e o último tenha sido indicado, o filme não tem marchise para atrair público suficiente para lotar as salas de cinema. Então, tem-se que confiar na escolha dos atores para que tenhamos duas horas de diversão. Nada além disto. O título parece mais o de uma competição de atletismo do que algo que nos ligue logo ao conteúdo da obra. Assim, é melhor não esperar muito.



              


Ocorre que “A Prova” é um filme sensível, sobre gente, coisa rara nestes tempos em que o cinema virou tão só um negócio, cheio de sexo, traições, tiros, mortes, explosões e muitas latas e latas de pipoca e garrafões de coca-cola. Baseado na peça do dramaturgo David Auburn, trata da vida do matemático e professor Robert (Anthony Hopkins), da Universidade de Chicago, e sua relação com a filha Katie Gwynet Paltrow, estudante de Matemática. Dois entrechos logo ocorrem: o primeiro é que a Universidade de Chicago é o centro do conservadorismo norte-americano. É a universidade de Milton Friedman, papa do monetarismo e um dos defensores do neoliberalismo. O segundo, não menos importante, é que o filme é sobre a superação, a forma que o ser humano encontra para contribuir com idéias novas, sobre os escombros daquilo que parece a todos insuperável. 


 
             


Duelo de boas interpretações
         
              


Dito desta maneira parece pouco, mas não é. Narrado em flash-back, “A Prova” tem, como há muito não se via, um confronto entre dois jovens atores: Gwynet Paltrow e Jake Gyllenhaall. Ele faz o professor Hall Dobbs às voltas com sua tese de doutorado, que pretende pesquisar nos 103 cadernos escritos por Robert durante sua doença, para levar adiante seu trabalho. Numa visita a Katie é flagrado levando um dos preciosos cadernos de elaborações matemáticas de seu pai. Os dois se digladiam, se agridem, se atraem e se rechaçam. Ninguém duvida que acabarão se apaixonando. Não é este, no entanto, o centro do filme: o que os roteiristas Auburn e Rebecca Miller e o diretor Madden querem é mais: mostrar que na fragilidade de Katie e na  perseverança de Hal Dobbs em torno de algo árido como cálculo integral, matemática pura, elaborações abstratas, está o contraponto aos temas centrais de nosso tempo.



           


O marketing avassalador do sucesso, do dinheiro, da competição e do prazer, não deixa espaço para as causas nobres, a superação, a contribuição, o ideal. Tudo isto leva tempo para ser conquistado, exige abnegação, trabalho duro e destemor. Katie abandona os estudos para cuidar do pai; acometido de esclerose. Ele se recupera. Ganha fôlego e ânimo para terminar um trabalho há muito ansiado. É algo que nenhum matemático jamais fez. Ela não sabe, descobre um dia ao voltar da universidade. E o encontra no jardim, sob uma cobertura, tomado pelos números, cálculos e folhas de caderno. Nem o frio de dois graus o impede de parar ou de perceber sua presença. Ao vê-la, ele se põe a falar, envolvendo-a incisivamente. É quando se percebe que ele a quer não como uma filha que ajuda o pai num trabalho de difícil concepção, mas alguém que pode estar à sua altura.
  
           


Diálogos inteligentes sustentam o filme


          


Tudo isto se sobressai nos diálogos, intensos, inteligentes. Ele vai empurrando-a, levando-a até onde quer. Katie se retrai, sente-se desafiada. Tímida, retraída, pouco dada a rompantes, ela o irrita. O filme cresce: é o confronto entre ambos que o faz avançar, não uma história, um fato inusitado que o espectador espera que seja desvendado ou que alguém revele um segredo. São as idéias, as reações dos personagens, a concentração exigida do público que valem. E ninguém precisa entender de cálculo integral ou de matemática pura para acompanhar o que se passa na tela. O admirável trabalho de Paltrow e de Hopkins sustenta a ação: torcemos para que ele a impulsione e ela reaja. Ela, no entanto, tem uma contribuição a dar e a guarda. É o que torna a relação entre os dois instigante.



         
Entre um flash-back e outro, surge o personagem que fará o contraponto necessário a esse choque de idéias entre pai e filha: Claire (Hope Davies), agente financeira, chega para o enterro do velho e encontra Katie às voltas com a polícia. Dobbs, em sua visita, havia escondido o caderno de Robert e Katie havia chamado a polícia para expulsá-lo de sua casa. Quando Claire chega, os dois estão às turras. Ele insiste em obter os cadernos de Robert para sua tese e ela não os quer liberar. Claire está de passagem, veio para o enterro do pai e quer voltar logo a Nova York, para onde se mudou, depois de se formar em Chicago. Nada do que ocorre ali lhe interessa. Trata de dizer a que veio: vender a casa e levar a irmã contigo. Nem lhe pergunta se ela quer ir.  Os cadernos do pai não são contribuições, Mas, tão só, anotações. É melhor dá-los a Dobbs.



           


Esse contraponto entre Claire, interessada na venda da casa e em acomodar a irmã em seu apartamento até que ela arrume sua vida, e Katie intimidada com sua insistência, mostra a tendência dos tempos pós-modernos: sentimentos, raízes, contribuições e história pouco importam. O que vale, nesta concepção, é o sucesso, e a melhor forma de alcançá-lo é ganhando dinheiro. Katie, pelo contrário, vê-se intimidada com o raciocínio, a rapidez, o sangue frio da irmã em querer levá-la para Nova York, enquanto ela nem sentiu ainda a perda do pai. E Dobbs, por mais que esteja interessado nos cadernos de Robert, sente-se atraído pela aparentemente perturbada Katie. Ele vacila, titubeia, em confrontar os cadernos e chegar a uma revelação que poria as duas irmãs em sintonia.


        


Claire encarna o espírito de Chicago


        


O interessante em “A Prova” é que Claire é o espírito puro da Universidade de Chicago, produto do dinheiro, do mercado e da ausência do Estado. É fria, direta, desligada de qualquer liame fraternal e filial. Enquanto Katie, por mais que retrate a cientista, aquela que se vê como alguém que é só raciocínio, é toda emoção, sentimento, timidez, insegurança. Liga-se mais às coisas, a casa, aos cadernos do pai, ao lugar onde mora. E vê-se como mulher ao ser amada por Dobbs. Claire está há todo momento falando no marido, na comida que ele faz, na vida que levam juntos; bem ao estilo consumista, supérfluo, da alta classe média neoliberal. São coisas que irritam Katie, a desafio, a descontrolam, a tornam ainda mais insegura. Ainda mais pressionada por Dobbs, que começa a descobrir fatos submersos em sua relação com o pai.


       


Funeral vira festa


       


Estas circunvoluções de Madden/Auburn/Miller mostram o espírito dos novos tempos. Os idealistas correm o risco de perderem espaço para os supostamente objetivos, tomados pela realidade, que moldam a seu bel prazer. Os roteiristas e o diretor tomam partido ao reforçar a posição de Katie. Ela enfrenta Claire depois de sucumbir a seu assédio e imposição. Tem um objetivo contrário ao dela, a intenção de contribuir para o avanço da Matemática, demarcando sua posição no mundo. Não é nada altruísta, a ponto de provocar uma revolução, mas no âmbito do filme, sim, pois retira a ciência de um estágio e a coloca em outro mais avançado. Para isto, Katie teve de confrontar o pai, enfrentá-lo em seu próprio campo e sentir-se culpada pela morte dele.  Tudo isto escapa a Claire – ela tem melhores afazeres do que se interessar pela culpa que atormenta a irmã.



        


A forma como estes entrechos são montados fazem a diferença. São os intérpretes que levam adiante as idéias de maneira clara, atraente. Enfim, são a razão de se ver este “A Prova”, que não é uma obra-prima, às vezes resvala para o clichê, mas tem imagens e diálogos poderosos. É emblemático o diálogo entre Katie e Claire quando esta diz à irmã que deveriam fazer uma festa durante o velório do pai, pois um funeral não precisa ser tétrico. Atesta o caráter do personagem e de toda uma época. Tudo precisa virar show, até o velório do próprio pai. Katie, no final, toma uma atitude mostrando que é preciso, ainda e sempre, se apegar àquilo em que se acredita para, sem dúvida, contribuir para as mudanças que se fazem necessárias, mesmo que seja na forma de uma equação. Afinal, a vida é bem mais do que isto.


 


“A Prova (Proof)”. Drama. EUA. 2005. 100 minutos. Roteiro: David Auburn e Rebecca Miller. Direção: John Madden. Elenco: Gwynet Paltrow, Anthony Hopkins, Jake Gyllenhaal e Hope Davies.

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