“A Rainha”: Imagens retocadas

Filme de Stephan Frears mostra-se um merchandising que tenta retocar as imagens da  rainha Elizabeth II e do primeiro-ministro Tony Blair

Na noite de domingo, dia 25 de fevereiro, a atriz britânica Helen Mirren fez um discurso em que elogiava a Rainha Elizabeth II pelo “equilíbrio” com que se portou diante da tragédia que vitimou a princesa Diana. Aparentemente destoava do filme pelo qual acabava de ganhar o Oscar de melhor atriz de 2006. Só aparentemente, pois “A Rainha”, filme do diretor inglês Stephan Frears, é um comercial de 1h47 da soberana britânica e do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair. Durante este tempo, vemos a transformação da rainha, de figura fria, distante de seus súbitos, em uma chefe de Estado que age de acordo com a conveniência política. E, sobretudo, alguém cuja “persona” é um enigma, poucas vezes mostrado em sua intimidade, transformado num ser comum, capaz de ter reações iguais às qualquer mortal.



                       


Esta desmistificação de Elizabeth II (1926), uma das monarcas mais longevas do planeta (está no poder desde 1952), é um dos raros trunfos deste filme. Ela, educada de forma rígida para governar, mesmo que sem status real de poder, se deixa mostrar em trajes plebeus (saia, blusa e sapatos baixos) e dirigindo sua caminhonete. Vai de um lado ao outro, cheia de dúvidas, tomada pela súbita notícia da morte da ex-nora, mulher de seu presumível sucessor, o príncipe de Gales, Charles. Não é um ser acima da cidadã comum, pelo contrário é alguém mortal, entregue a um dilema que pode atingir qualquer mulher que tenha netos e estes tenham perdido a mãe, devendo a avó cuidar deles. Só que Elizabeth II não é uma mulher qualquer, mesmo se mostrada assim por Stephan Frears.


 


                         


Rainha tenta escapar à comoção pela morte da princesa  Diana


                         


Acostumada a manter-se na sombra, longe dos olhos de seus súditos, ela quer conservar distante do palácio Balmoral, no campo, toda a comoção que tomou conta do país, quando a morte da princesa Diana. É então que Frears a coloca em seu lugar. Não se trata de uma mulher comum tentando manter suas reações e a de seu povo sob controle. Ao enveredar para este lado, o filme ganha em dramaticidade, porquanto as pessoas sabiam das rusgas, as brigas e a maneira como ela tratava a nora, admitindo inclusive o caso de seu filho com outra mulher, também membro da realeza. A discórdia dá o tom de suas relações, levando-a a assumir diversas atitudes que contrariam a população. Qualquer traço de ela ser alguém comum cai por terra. Ela terá de agir como mulher, avó, ex-sogra, monarca, chefe de Estado, e, ainda mais, como ser humano. Não é fácil para alguém acostumado a viver sempre no patamar mais alto do pedestal, literalmente.



                         
Frears cuida para que isto ocorra sem arranhar a “persona” que ele e o roteirista Peter Morgan criaram ao longo do filme. A empatia com o público já fora estabelecida. Qualquer falha que ela vir a cometer já estará perdoada. Ela, pela forma como a mostraram, ainda mais numa bela cena em que se defronta de repente com um servo em pleno rio, poderia até falhar naquele instante. Menos pelo fato de ser a monarca, aquela da qual seus súbitos aguardavam um gesto pequeno que fosse. Salva-a o primeiro-ministro, sorridente, com suas intervenções calibradas, quase sugestões, não fosse Tony Blair o chefe de governo, dependente de sua imagem (e o filme trata de imagem, principalmente) e das reações e atitudes da rainha, chefe de Estado, para sobreviver. É cheio de nuances, meias intenções, manobras que vão, aos poucos, envolvendo-a. Se a dupla Frears/Morgan quiseram desmistificar a figura da soberana, com Blair a construção é de uma “persona” feita para a modernidade. Ele, sim, a levará para este outro lado, que implica em jogar com a imagem.


 


                 
Imagem de Elizabeth II foi posta em xeque


                
 


É a imagem, não a ação de Elizabeth II que está em jogo. Blair, para atingir seus intentos, chega a lançar sobre ela uma pesquisa que põe em risco a própria sobrevivência da monarquia, caso ela não se manifestasse sobre a morte trágica da ex-nora. Está atento aos mínimos detalhes, ajudado por um assessor de comunicação que retoca o discurso da própria rainha. A cena em que ela é informada sobre a mudança é significativa. Ela apenas retruca: “Há escolha?”. Blair, que depois lançaria a Inglaterra nos braços de George Bush e nas arenas de guerra do Afeganistão e do Iraque, sabe usar a mídia, criar slogans (“A Princesa do Povo”, para mitificar ainda mais a princesa Diana) e escapar às armadilhas da subserviência à rainha. Ela, sem saída, e sob pressão da mídia, vê nele sua única chance de sair menos arranhada do episódio.



               
“A Rainha” é assim um filme com ares de arte, quando, na verdade, é um merchandising de Elizabeth II e de Tony Blair. Quando Helen Mirren discursa ao receber o Oscar de Melhor Atriz acrescenta mais brilho à soberana. Coloca-a num patamar superior ao trono que ela ocupa. E obscurece as qualidades do filme que estrela. Uma delas é justamente sua criação, a de um personagem estruturado nos mínimos detalhes, a ponto de ser vista como sósia da própria monarca. Quando ela senta, ocupa o exato espaço que deve ocupar, quando fala a entonação é de alguém que tem autoridade e tem sobre os ombros mais de mil anos de história. Só alguém como ela, Mirren, pode fazê-lo com tal brilho. O mesmo se pode dizer de Michael Sheen, que faz um Tony Blair articulado, relaxado, que se submete às reprimendas da mulher e divide com ela as tarefas da casa, sem deixar de atinar para a importância da imagem, que seus gestos rendem e constroem.


 


                 
Fotografia e música ajudam o filme


               


Até o clímax não se percebe a estruturação do roteiro, as pedras montadas para levar o espectador a aceitar a rainha e ele, Blair, como são apresentados. Ajuda-o a fotografia do brasileiro Affonso Beato em tons azulados, cheia de sombras, deixando sobressair a melancolia, sem cair nas sombras, na comoção que levaria o filme direto ao luto. É discreto, realçando apenas o deslocar dos personagens, ajudado pela esplêndida música de Alexandre Desplat. Esta está ali para acentuar emoções, reações, compor com a fotografia estados de espírito, não para destacar o estado funéreo que poderia dominar o filme. Tudo é feito com muita elegância, até a direção de Frears é menos impositiva, quase discreta.



                
Quem gosta de olimpianos, seres que estão supostamente acima dos simples mortais; “A Rainha” é um bom filme. Principalmente  se não for exigente com Frears, que fez, como já observado um merchandising de Blair e Elizabeth II. Agora se o for analisar em profundidade, Frears fica a dever, e muito. É um de seus filmes mais fracos. Está longe da malícia e picardia de “Ligações Perigosas”, que analisa as relações amorosas da nobreza inglesa na “época vitoriana”; de “Os Imorais”, sobre a violência e a paixão doentia de uma mãe pelo filho; “Minha Adorável Lavanderia”, sobre relações submersas entre um inglês e um indiano, e, sem esquecer, o ótimo “A Grande Família”. É a história do que pai que ao descobrir a gravidez da filha vai, devagar, assumindo-a, até tornar um de seus defensores. São filmes que mergulham, de fato, nas relações entre as classes e destaca a natureza humana daí derivada.


 


                
Parece filme feito sob encomenda


               


“A Rainha” parece um daqueles filmes feitos sob encomenda que louvam o poder. E justamente num momento em que Blair está em baixa, devido à subserviência ao Governo Bush e aos baixos índices de aceitação de seu governo, devido à sua política externa. Se for para recuperar sua imagem, o filme contribui enquanto o espectador estiver no cinema tomado pelas poderosas cenas que o compõem, quando ele sair para a rua, a realidade pode retomá-lo e então, ela, a imagem, cai no vazio. E Frears fica nos devendo um filme à altura de sua cinebiografia.


 



“A Rainha” (The Queen). Inglaterra/ França/Itália, 2006, 1h47 minutos. Roteiro: Peter Morgan. Fotografia: Affonso Beato. Direção: Stephan Frears. Elenco: Helen Mirren, Michael Sheen, James Cromwel.

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