A santa ardência da malagueta: comer pimenta é uma arte

Mas o turismo destrói nossos costumes alimentares

Minhas filhas dizem que sou a única pessoa do mundo que come pizza com pimenta malagueta. Considero uma privação de prazer comer sem pimenta. Quando fui a Mar del Plata, em 1994, passei uma semana comendo "chilis" desidratadas. Certa vez, em Santiago do Chile, anos 2000, comi tabasco, melhor que pimentas desidratadas, mas não gostei. Passei a levar pimenta malagueta pra onde quer que eu vá. Quando vou comer em casa de pessoas amigas, indago se há pimenta. Algumas se espantam, outras riem. Em restaurante, após dizer o que desejo saborear, invariavelmente peço "pimenta de verdade": a malagueta. É um ritual de "comfort food" (comida que conforta).

Para alguns, coisa de nordestino pobre – postura reveladora de ignorância gastronômica, pois comer pimenta é uma arte, desde tempos imemoriais. Há registros de seu uso há 9.000 anos a. C.. Hipócrates, o Pai da Medicina, acreditava nos princípios curativos da especiaria aromática picante. Estava certo: as pimentas não encerram apenas sabor e prazer, estimulam o apetite, auxiliam a digestão, possuem valor nutritivo e são fontes de vitaminas A, B, C e E, sendo que as vitaminas C e E e os carotenoides são antioxidantes naturais, sequestradores de radicais livres.

A capsaicina, que dá ardência às pimentas, aumenta a produção de endorfinas – substâncias naturais do organismo indutoras da sensação de prazer; é analgésica, anti-inflamatória e anticoagulante. Segundo pesquisas, na Tailândia e na África, o uso regular de pimentas é responsável pela menor taxa de fibrina no sangue (substância que participa da formação do trombo) e da baixa incidência de tromboembolismo.

A pimenta brasileira é um conjunto de 25 espécies de "capsicum", com frutos de sabor picante similar ao da Piper nigrum (pimenta-do-reino), especiaria indiana, a rainha das pimentas, que de tão apreciada e valorizada pelo efeito conservante sobre a carne era aceita como moeda – daí a locução "pagar em espécie".

Os índios brasileiros comiam pimentas e a chegada dos africanos, apreciadores dos sabores picantes, as sedimentou na culinária nacional. Comer pimenta diz muito da culinária brasileira, menos em Natal (RN). No seminário de fundação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB, 1994), diante de uma peixada cujo cheiro inebriava a alma, quase tive um troço ao pedir pimenta. A garçonete: "Num tem!". Perdi as estribeiras: "Um restaurante nordestino sem malagueta?". E ela balbuciou: "Senhora, aqui não é que nem na Bahia, não! Lá é que em tudo tem pimenta. Quase não usamos. É costume. E também os turistas não gostam!"

"A senhora acha que sou o quê? Eis uma turista que gosta de pimenta!". E fiquei a esbravejar contra o turismo que destrói nossos costumes alimentares. Terminava o almoço quando a garçonete reapareceu: "Senhora, mandaram comprar a pimenta, mas não acharam. Amanhã comerá com pimenta". No dia seguinte, estava lá um vidrinho vagabundo de pimenta.

Aprendi a comer pimenta ainda criança. Escondia a malagueta no arroz, já que só adultos e meninos podiam comer pimenta, pois "menina que come pimenta fica quente" – eis o mito do poder afrodisíaco das pimentas, origem da cultura que as interditava para as meninas. A proibição continua!

Não é que não como sem pimenta. Até como, mas tenho o hábito de "apimentar" qualquer comida de sal. Aprecio a santa capsaicina da malagueta e acho a coisa mais sem graça do mundo uma comida sem pimenta.

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