A verdade artística do século XXI é o feminismo

Desde que o mercado, o capitalismo e a indústria cultural engoliram a produção da arte durante o século XX, identificar a “verdade” estética e conceitual por trás do processo criativo se tornou o mote principal da concepção artística, e na música não foi diferente.

Desde o “Paz & Amor” dos hippies, passando pelo “Do it yourself” dos punks, até as hashtags ativistas da contemporaneidade digital, defender um discurso por trás da sua obra, ou mesmo sustentar uma ideologia com sua trajetória, é pilar fundamental à consistência estética de uma expressão, quer seja na música, no cinema ou nas artes visuais. A arte permeada de política e atitude é e sempre será instrumento lúdico e propagador de ideais libertários.

Nos anos 1990, a música dita alternativa viveu seu auge, alavancada por cenas como a de Seattle, no norte dos Estados Unidos. Esta cidade apresentou ao mundo bandas como Nirvana, Soundgardem, Pearl Jam e Alice in Chains. Não que estes artistas fossem o suprassumo do rock alternativo da época, mas muito do que a sonoridade grunge destes caras descortinou para a mídia, para o público e para o mercado, de um modo geral, ampliou o discurso da música independente para outros públicos.

Bandas e artistas “independentes”, de um circuito alternativo ao das grandes gravadoras, tinham seus próprios selos discográficos, realizavam e tocavam em festivais pequenos, feitos de forma colaborativa, com poucos recursos e, praticamente, sustentavam suas turnês com a grana de seus outros empregos.

Eram pessoas que acreditavam que o fato de não sofrerem interferência do mercado e este espírito livre do ambiente dito Underground (expressão em inglês que significa embaixo da terra, mas que no universo cultural faz referência a um submundo fora do mercado tradicional ou mainstream) legitimavam a qualidade artística de suas bandas.

Em boa parte dos casos, isso era apenas um motivo para tomar cerveja e fazer barulho com suas guitarras desafinadas em pequenos clubes ou casas de shows, que lotavam com pouco mais de 100 cabeludos. Mas é a esta configuração de liberdade criativa que os alternativos atribuíam a sua legitimidade artística.

A Verdade do Gueto

Descrevendo a realidade dos subúrbios, a vida dura de gente pobre, a violência do Estado e o racismo estrutural, o rap traz a verdade das comunidades negras das zonas periféricas das grandes metrópoles. Uma narrativa sobre falta de condições de vida e exploração, cheia de crítica social, em cima de beats pesados, graves como a situação, e que exaltam uma juventude que pode mudar o mundo, se tiver oportunidades iguais às dos brancos de classe média.

Porém este mesmo discurso de liberdade e direitos ainda carrega um arquétipo heteronormativo e sexista. É óbvio que não é apenas no rap, mas o ritmo e a poesia ainda não trazem com a força necessária a visão da mulher oprimida. Dentro de um universo de MCs, DJs, grafiteiros e dançarinos de break, as mulheres ainda são minoria. Seu ponto de vista e suas pautas não são trazidos à tona.

É um espaço que tem sido conquistado e ocupado. E, recentemente, o hip-hop tem figurado como uma forte arma de conscientização e promoção de ideais feministas de Mcs como Karol Conka, Carol Bandida, Arrete, Rimas e Melodias, Lady Laay, Amanda Negrasim, Issa Paz, entre tantas outras que você precisa conhecer.

O crescimento e fortalecimento da música periférica de várias origens é desencadeado com a força do hip-hop nos vários cantos do mundo. Estilos como o funk carioca, o tecnobrega paraense, o kuduro angolano, a cúmbia argentina e colombiana, ou mesmo o reggaeton caribenho, reorganizam o protagonismo dos criadores de conteúdos.

Gente mestiça, negra e periférica, que historicamente era apenas recebedora dos conteúdos artísticos, estéticos e culturais oriundos do imperialismo cultural americano e europeu, pôde, através do barateamento das tecnologias de produção, puxar o holofote pra si e influenciar seus equivalentes ao seu redor, com costumes, expressões, cortes de cabelo e uma imensidão de referências ultra-locais. Mas, infelizmente, tudo ainda muito focado no corpo da mulher e de jovens meninas adolescentes, um triste legado que deve ser compreendido e combatido.

Feminismo é Revolução Estética!

O feminismo presente na obra de mulheres extraordinárias como Elza Soares, Rita Lee, Valeska Popozuda, Letrux, Karina Buhr, Preta Rara e Aila é revolucionário. Ele traz a verdade artística mais contemporânea de nosso século. O lugar de fala da Mulher!

Muito mais que proposição estética apenas, este olhar convoca e provoca a uma consciência de igualdade, fala de um gigantesco alerta sobre violência de gênero, sobre o machismo estrutural que mata mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Este discurso remonta à compreensão de situações cotidianas de assédio, que não são uma simples paquera.

A obra destas e de outras artistas feministas é, naturalmente, recheada de referências artísticas e estéticas que vão além do debate sobre o protagonismo da mulher.

Inspirações e elementos extraídos de trabalhos de homens e mulheres, cantores e bandas, gays e hétero. As influências são infinitas, o que torna estes trabalhos ricos em pontos de vista diversos, mas com este absoluto diferencial existente em narrativas feitas por mulheres, um olhar que protagoniza o discurso delas. Em meio a uma sociedade amplamente machista e sexista, a produção destas obras ainda se preocupa em empregar e agregar outras fazedoras de arte. Muitos destes trabalhos são produzidos, dirigidos, tocados e compostos por mulheres, uma aula de inclusão e sororidade, porque não basta o discurso, a revolução tem que ser na prática.

O feminismo, e os feminismos, são uma pauta muito complexa, as diversas formas de compreender as bandeiras desta luta imensa merecem muito mais que estas linhas para um entendimento mais apurado, inclusive da música concebida por estas mulheres.

E sobre a música como lugar do debate e da diversidade, não poderia aqui deixar de mencionar Linn da Quebrada, MC trans, paulista que atua promovendo a visibilidade trans em suas músicas e seus shows, dona de uma performance visceral, que traz em suas letras a absolutamente necessária pauta Queer. Linn convida o interlocutor a pensar sobre a sua sobrevivência.

Em seu show altamente dançante, ela não só entretém e diverte, como alerta para números alarmantes do massacre de trans e travestis no Brasil. Em músicas fortes nas batidas e no sentido dos temas tratados, Linn da Quebrada traz um olhar mais cru sobre a realidade de pessoas que estão à margem da sociedade pela sua orientação sexual, e que são brutalmente assassinadas por conta de sua identidade de gênero. Esta pauta da visibilidade trans possivelmente abra um novo capitulo estético neste século feminista.

Ouça algumas dessas mulheres na playlist da coluna no Spotify:


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