Aliado G: Um pouco sobre: periferia, juventude e hip-hop

Milhões de CDs vendidos, grifes de sucesso, comportamento, poesia, artes plásticas, dança, filosofia e literatura. É possível influenciar em todos estes sentidos, sem dispor de um poderoso instrumento de difusão em massa, ou passar necessariamente pelo

O hip-hop consegue, daí surge à questão central deste texto, que tem ganhado cada vez mais a pauta no debate sobre juventude, seja na academia, nas administrações públicas ou mesmo no conjunto da sociedade. Como o hip-hop estabelece este intenso e íntimo relacionamento com a juventude, sobretudo urbana e periférica? 


 


Hoje já são inúmeras as pesquisas acerca deste tema. Tem se tornado rotina, meu telefone toca, quando atendo alguém diz:
– Desculpe, um amigo me passou seu numero, eu sou estudante e estou trabalhando numa pesquisa sobre Hip-hop, você se importaria em responder algumas perguntas?


 


Eu particularmente não passo uma semana sem receber ao menos uma ligação nesse sentido. Procuro responder a todas. Se me permitem um breve comentário, é que eu considero a pesquisa algo fundamental para o desenvolvimento humano, inclusive penso que um dos grandes desafios do Brasil, é justamente transformar nossa internacionalmente reconhecida capacidade cientifica em tecnologia, a serviço de um ''Projeto Nacional de Desenvolvimento''.


 


Por vezes ouvi, ou mesmo pude ler, diferentes opiniões como resposta a nossa questão. Um ''intelectual'' afro-brasileiro, certa vez disse: ''Hoje os índios usam camisetas do Chicago Bulls, e o hip-hop é o culpado''. Eu gostaria de ter a oportunidade de perguntar a ele, se do alto de sua sabedoria, poderia me responder, quem seria então o ''culpado'' por ''nativos'' de diferentes nacionalidades usarem a camiseta da seleção brasileira de futebol, seria o Samba? Reparem que eu prefiro o termo ''nativos'' para não ser contraditório, afinal o termo ''índios'', esse sim, é herança maldita dos colonizadores, escravagistas, que vitimaram meus ancestrais, que por coincidência são os mesmos do referido ''intelectua''”, postulante a condição de ''meritocrata das questões neocoloniais''.


 


Por favor, não queiram atribuir ao hip-hop o que é inerente ao conjunto da sociedade, o hip-hop é sim, um movimento internacional, porém não é responsável pela internacionalização dos tráficos de armas, drogas, seres humanos, violência, desigualdades sociais ou quaisquer outros males desses tempos de ''globalização''.


 


Mas, dentre esta diversidade de opiniões a que mais me intriga, é a afirmação de um renomado maestro (tão renomado que não necessita ser citado) que, ''o hip-hop se resume a uma forma colonização do negro norte-americano sobre os negros brasileiros'' e que o ''rap'', não é música e qualquer ''retardado'' pode fazer. Muito bem Senhor Maestro, seguindo sua linha de raciocínio, ouvir Beethoven, ler partituras, reger ou executar música clássica européia, seria então uma forma de perpetuar a colonização do branco europeu sobre os brancos brasileiros?


 


Não vamos aqui desprezar nossa rica capacidade ''antropofágica'', em devolver ao mundo as diferentes contribuições culturais que recebemos, em belíssimos contornos bem delineados em ''verde e amarelo''. O que é o nosso samba, se não o encontro da ''batucada africana'' com a ''harmonia das cordas européias'', e o que é musica? Se não a organização de sons e ruídos segundo uma cultura? E ai está a minha dúvida Maestro, existe cultura melhor, ou seriam apenas diferentes? O senhor que é um homem culto e avançado, com certeza tem a resposta, eu como sou apenas um ''retardado'' que graças a esta ''estupidez'' chamada hip-hop, contrariei as estatísticas, completei 32 anos, vou continuar cantando meu rap (o que eu tenho certeza que o senhor não consegue fazer), e escrevendo de forma humilde minhas opiniões, que felizmente divergem das suas, viva a ''democracia'', a música clássica, o rap, o samba, o tango, o vira, e todas as manifestações culturais mundo afora, meu eterno respeito a todas.


 


Porém nossa questão central continua sem resposta, então vamos a minha tentativa. Quando a ''Mãe África'' foi violentada e os africanos foram arrancados de seus braços para serem escravizados nas Américas, uma tentativa de matar a cultura desse povo foi posta em prática. Destruindo seus instrumentos musicais, imaginaram que estariam destruindo a cultura e sem cultura não há identidade quanto ''Nação'', com isso a dominação estaria facilitada, porém este esforço não passou de um ''Equivoco Histórico''. Nos Estados Unidos, ao ter contato com a guitarra, os negros mudaram sua afinação e com um dedal de aço para pressionar as cordas, criaram o que hoje é mundialmente conhecido como ''BLUES'', aqui no Brasil, ao ter contato com o arco e a flecha dos ''Nativos'' criaram um novo instrumento musical, conhecido como ''BERIMBAU'', o fato é que o ''BERIMBAU'' e a “Guitarra de BLUES'' tem exatamente a mesma afinação, e isso não foi combinado pelo ''MSN'', com certeza.


 


Isso mostra que a cultura está no ''DNA'' do povo e não no instrumento. Junto com os negros, também sobreviveram ao atlântico, ao porão do navio negreiro, as chibatadas, a tortura e a humilhação, o seu maravilhoso ''Canto Falado'', que começa a ser difundido em novas bases rítmicas, produzidas a partir destes novos instrumentos, como bateria, contrabaixo e guitarra, quando surge a técnica dos DJs em misturar o som de dois discos iguais, criando um novo som, o ''Canto Falado'' se soma a isso e o batizam como ''rap''. No Brasil, o canto falado também se soma a diferentes sons, como o do pandeiro e ai surge o ''repente'', só pra citar um exemplo. Ainda hoje, temos no Brasil, mais de sessenta (60) diferentes tipos de canto falado.
Agora observemos, quem é essa juventude da periferia dos grandes centros urbanos?


 


Simples, os filhos da ''classe trabalhadora brasileira'', que migrou do campo, no processo de ''industrialização''. E quem formou essa classe? Alguns europeus (imigrantes em busca de uma nova vida, longe da ''Guerra Napoleônica'' e que cumpriam um importante papel para a ''elite da época'' que desejava o ''branqueamento do povo brasileiro''), somada a alguns ''nativos'' (sobreviventes do massacre promovido pelos colonizadores), mas sobretudo formada essencialmente pelo ''povo negro''. Esse povo que se valia do seu ''canto falado'' em momentos de plantar, colher, comemorar, ou mesmo ir às batalhas. Portanto, esta ai a questão central, o hip-hop é uma cultura de ''Matriz Africana'' e está no ''DNA'' dessa Juventude periférica, quando um ''rap'' bate na caixa de som no barraco, e ecoa pela favela, é como se fossem os novos tambores ecoando pela diáspora, e os ''rimadores'' que o maestro classificou como ''retardados'' são os novos ''Griôs'' (aqueles que na África, viajavam pelas aldeias passando os conhecimentos de geração em geração).


Essa juventude urbana e periférica, estigmatizada, marginalizada, sofrida, herdeira, não de terras e diamantes, mas apenas da história de luta de seus ancestrais, é com certeza a que mais sofre, é a que tem seus direitos históricos e mesmo os constitucionais, violados cotidianamente. É aquela que mais absorve o impacto da cobrança desta sociedade do ''ter para ser'', que vende hoje, o melhor tênis no pé, a melhor roupa no corpo, o celular mais moderno, o carro, a moto. Sufocando pelo rádio, jornal, revista, outdoor, TV, exigindo de todos que tenham, e exijam do outro que também tenha para ser aceito. Só deixa como alternativa de responder na mesma velocidade da cobrança, uma profissão que não requer formação, nem sequer experiência em carteira, ou documento algum, apenas sua alma. ''Me de sua alma, e eu te darei tudo o que a mídia mostrou, a sociedade cobrou e você não conseguiu, sou sua única alternativa, tome sua decisão, viva pouco como um ''REI'', ou muito como um ''ZÉ''.


 


Espero-te de braços abertos, eu sou o crime


 


Infelizmente essa é a realidade, que se parece muito com a ficção mostrada naquele famoso filme ''Matrix'', onde em um determinado momento é oferecido ao protagonista uma escolha entre duas pílulas: ''se você escolher a azul, continuará vivendo nesta realidade forjada da ''Matrix'', mas se a escolha for à vermelha, você vem para o mundo real, e ao ver os demais vivendo a alienação da ''Matrix'' nunca mais deixará de lutar''. O hip-hop é um instrumento, eu e muitos outros tentamos fazer dele uma fábrica de pílulas vermelhas. Faça o mesmo a partir da sua realidade. Juntos, nós do hip-hop e todos aqueles que desejam uma sociedade onde a escola forme cidadãos e não os treine para aceitar essa “Matrix”, onde a diversidade não signifique desigualdade ou intolerância, e a liberdade de imprensa não signifique “libertinagem ou manipulação de imprensa”. Conquistaremos nosso tão sonhado ''Mundo Livre''.


Aliado G é rapper do grupo Face da Morte, presidente da Nação Hip-Hop Brasil
e membro do Conselho Nacional de Juventude.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor