“Aliança do Crime”, dupla face
Em filme sobre a máfia irlandesa, cineasta estadunidense Scott Cooper usa da biografia de Whitey Bulger para desglamourizar o crime organizado.
Publicado 03/01/2016 18:59
Tal foi o número de cadáveres amontoados sob uma ponte no Oceano Atlântico, em Boston, capital do Massachusetts, que o local ficou conhecido como o “cemitério Bulger”, numa alusão aos assassinatos cometidos pelo irlandês-estadunidense James “Whitey” Bulger (Johnny Depp), chefe da gang Winter Hill (Morro de Inverno) nos anos 70/80. A frieza com que liquidava seus inimigos e o crescente controle do tráfico de drogas, da extorsão e dos caça-níqueis atraíram as atenções do FBI (Agência Federal de Investigação), como se vê neste “Aliança do Crime”.
A partir daí estabeleceu-se uma ambígua relação na qual nunca se sabe quem usa quem e com que propósito. Embora a intenção do FBI fosse usá-lo para prender o chefão da máfia italiana Gennaro Angiulo e o dele valer-se de sua nomeação como agente sênior para ampliar sua influência no crime organizado em Boston e Miami. O elo entre eles seria o agente federal John Connolly (Joel Edgerton), seu amigo de infância, e com o qual continuaria a se relacionar familiarmente.
Com este tema central, o cineasta Scott Cooper e seus roteiristas Mark Mallouk e Jez Buterworth matizam uma narrativa dividida em capítulos centrados na delação premiada de seus parceiros de crime e compatriotas Kevin Weeks (Jesse Plemons), Stephen Flemmi (Rory Cochrane), e de seu inimigo italiano John Martorano (W.Earl Brown). É do ponto de vista deles que o espectador apreende sua personalidade, ações e capacidade de ludibriar o FBI, usando os agentes federais Connolly e John Morris (David Harbour).
Bulger é homem da rua e sombras
Bulger não age como CEO do crime organizado, com métodos inflexíveis de fazer a máquina ilegal agir, nem impõe aos que o procuram para obter ajuda um ritual que demonstre seu poder. Nada tem do siciliano Dom Corleone (Marlon Brando) da trilogia “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola. Católico, Bulger é um homem de rua, de encarar vítima ou adversário olho no olho, de agir nas sombras de estreitos espaços, com uma frieza e crueldade de gelar as entranhas de suas vítimas.
Mas ao contrário de outros chefões, circula sem guarda-costas e faz-se acompanhar às vezes de seus parceiros de crime, Weeks e Stephen. Visita e joga carta com a mãe (Mary Klug) e o irmão Bill Bulger (Benedict Cumberbatch), senador estadual. E embora tenha família, a companheira Lindsay Cyr (Dakota Johnson) e o filho Douglas (Luke Ryan), não fica em casa. Circula de carro pela cidade e encerra a noite no bar Triple O´S. Num típico comportamento de cidadão classe média.
Ao dotá-lo deste perfil, Cooper o desglamouriza, mostrando também seu sadismo. Em três sequências, ele bem o confirma: 1 – Tenta submeter Lindsay à sua visão sobre a doença terminal do filho, mantendo-a sob tensão e culpa. Ela, no entanto, reage sem medo; 2 – Impinge à jovem garota de programa Deborah Hussaj (Juno Temple) seu medo de ser dedurado, depois a presenteia com um apartamento e em seguida a degola.
Whitey não poupa nem as amigas
A terceira e última é puro horror. Por desconfiar que a companheira de Connolly, Marienne (Julianne Nicholson) poderia entregá-los ao FBI invade o quarto dela e aperta-lhe o pescoço enquanto ameaça sacrificá-la. Contudo mostra-se inteligente e perspicaz o bastante para ir além de seus negócios escusos. Sorrateiramente apoia a luta dos irlandeses do Norte contra os colonialistas ingleses (1919/1998), apoiando o IRA (Exército Republicano Irlandês) com doações em dólares e armas.
É com esta visão, adaptada do livro “Massa Negra”, de Dick Lehr e Gerald O´Neil, que Cooper trabalha. Com Whitey o FBI teve de trabalhar em duas frentes, a interna e a externa. Na primeira, serviu mais a ele, ao dar-lhe “cobertura” na expansão de “seus negócios” e cooptar para seu grupo os agentes federais Connolly e Morris. E na segunda só a descobriu após anos de apoio ao IRA. Mas acabou preso em 2011 e condenado a duas prisões perpétuas, mais 5 anos por 11 assassinatos, após 12 anos de fuga.
Cooper não o mitifica. Destituído de charme, Whitey (03/09/1939) é incapaz de sedução. Misógino, negligencia a capacidade de as mulheres reagirem a ele. Lindsey o faz, desafiando-o cara a cara. Marianne entra em pânico, mas critica Connolly por a ele se submeter. Também o FBI se mostra vulnerável às suas ações. Ele só cai por intervenção decidida do promotor Fred Wyshak (Corey Scott), não por suas frágeis investigações.
Cooper usa estética de filme noir
Cooper se vale da estética noir para matizar o clima do filme. Os personagens perambulam por espaços estreitos, escuros, com a câmera fixa num deles, como nas sequências: I – Stephen observa Whitey estrangular Deborah parado, horrorizado. Durante vários segundos, ela agoniza, ele nem reage; II – Whitey e Connolly, depois de serem descobertos estão à beira mar, solitários, perto da gigantesca ponte do Atlântico, tomada pelas sombras. Enfim, o dinheiro não lhes deu guarida.
“Aliança do Crime”. (Black Mass). Drama policial. EUA. 124 minutos. 2015. Música: Tom Holkenborg. Edição: David Rosenbloom. Fotografia: Masanobo Takayanagi. Roteiro: Mark Mallouk/Jez Butterworth. Diretor: Scott Cooper. Elenco: Johnny Depp, Benedict Cumberbatch, Joel Edgerton, Dakota Johnson, Julianne Nicholson.