“Altos e Baixos”, fraturas expostas

Cineasta tcheco Jan Hiebejk antecipa crise de refugiados na União Europeia em filme sobre tráfico humano, xenofobia e dramas familiares

Embora pareça premonitório, ao mesclar o drama dos refugiados do Oriente Médio aos das famílias de seu país, em 2004, neste “Altos e Baixos”, o cineasta tcheco Jan Hiebejk antecipa o caos vivido hoje pela União Europeia (UE). E além disso dá conta de seu complexo tema ao expor as contradições e as fragilidades de seu povo, numa hilariante comédia-dramática dotada de corrosivo humor.

Com narrativa circular, o filme se divide em duas tramas e vários fios que as sustentam. Numa delas o casal proletário Franta e Milla enfrenta os dilemas do subemprego e a vontade de ter filhos, noutra a família do professor universitário Oto, às voltas com sua doença, sente a urgência de superar antigas feridas. A partir daí Hiebejk vincula-os à tragédia de dimensões planetárias dos árabes chegar enfim à Alemanha.

Tudo se dá através de uma rede internacional que começa no país de origem e termina no do almejado destino. São vários elos que surgem à medida que múltiplas rotas vão sendo cumpridas. Em Praga, um escritório de fachada montado para a travessia de fronteira cumpre este papel. Numa dessas viagens, depois de escapar à polícia de fronteira, o motorista esquece um bebê árabe no caminhão, se tornando o leitmotiv da narrativa.

EUA e UE levam árabes ao caos

Este novelo permitirá a Hiebejk revelar submersas facetas de Franta, que não consegue integrar os quadros da polícia por pertencer à fanática torcida organizada do Sparta de Praga (1893) e ter sido banido dos campos de futebol por agressão aos adversários. E para complicar, o chefe de torcida critica-o por fugir aos jogos e ter adotado o bebê árabe. “Como isso é possível? Você é moreno, mas é branco, Mila é branca, ele é preto!“.

Desta forma, Hiebejk antecipa a atual crise de refugiados provocada pelos EUA e UE ao depor os governos de Iraque e Líbia e desestabilizar a Síria, para controlar reservas de petróleo e de outros minerais. O resultado é a desestruturação dos esteios sócio-político-econômicos desses países, a onda de refugiados, a morte de milhares de pessoas, dentre elas crianças e idosos sob guerra e em naufrágios em alto mar. E, além disso, abrem espaços para organizações fundamentalistas no Oriente Médio e na África, gerando resultados igualmente desastrosos para seus povos.

Martin é imigrante sem barreiras

Se esta primeira trama desnuda as influências políticas na vida de cidadãos comuns, também a segunda o faz ao tratar de família classe média. Diante de seu problema de saúde, Oto se reúne com Vera, sua ex-companheira, e filho de ambos, Martin, e Hanka, atual companheira, e a filha deles, Lenka, para discutir a dupla situação. Pura ilusão, a conversa coletiva termina num acerto de contas e gera mal-estar. Porém evidencia o quanto Hanka e Martin estão próximos.

É maneira de Hiebejk incluir uma variante ao tema dos refugiados. E discutir a liberdade de se viver em outro país, por ser o planeta o habitat natural de qualquer cidadão. O fotógrafo Martin, mesmo sendo tcheco, não enfrentou barreiras na Austrália para onde migrou e tem companheira aborígene e um filho tcheco-australiano. E pode transitar entre a Europa e a Oceania sem submeter-se à xenofobia ou qualquer tipo de controle migratório.

Mas é Hanka quem faz a ligação entre os dois fluxos migratórios. Um pela ligação com Martin, o outro por trabalhar numa ONG. Nesta ela termina entendendo as variantes entre um e outro, numa situação-limite gerada por um mal-entendido com um refugiado. Nem todos eles têm o mesmo objetivo. “Eu estou te ajudando e você age desta forma?”, questiona-o. O desfecho é este mosaico de situações em que tudo se move sem rede de proteção.

Perdas de Vera e Milla são trágicas

Além disso, Hiebejk faz brotar seu ácido humor incluindo os fios das duplas de assaltantes que ao aplicar golpes nos refugiados sempre fracassam. Num deles acabam na cadeia, onde exigem chá com limão, por ser lei a polícia servi-los enquanto aguardam a apuração de seu caso. Ou a sequência dos fanáticos torcedores xingando e gritando ao assistir ao jogo do Sparta pela TV, porque foram banidos dos campos de futebol.

O olhar de Hiebejk, no entanto, não é apenas para a tragédia, é também para os pequenos dramas. É de ternura para com Vera, que, idosa, sofre ao ver suas esperanças de reatar com Oto evaporarem. Ela deixa a sala e sai pelas escadas atordoada. A reação do filho é de que aceite o inevitável: acabou. O mesmo ocorre com Milla. Hiebejk a flagra na praça à espera de alguém que lhe doe o filho, para, enfim, concretizar seu sonho. Para uma é a perda, a outra o vazio, em meio ao incontestável drama dos refugiados.

Este fluir narrativo, cheio de contraposições, feito por Hiebejk, deve-se à elaborada montagem, que não deixa as duas tramas se perderem na profusão de personagens, fios e entrechos. Eles se alternam de modo a ressaltar o tema central num filme de multidão, de inter-relação entre o individual e o coletivo. E honra, assim, o criativo cinema tcheco (Trens Estritamente Vigiados, Jiri Menzel, 1967; Marketa Lazarova, Frantisek Vlácil, 1967).


Altos e Baixos. Comédia-dramática. República Tcheca. 2004. 108 minutos.

(*) Exibido na Mostra do Cinema Tcheco Contemporâneo, no Sesc Palladium-BH, de 15 a 20/09/2015.

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