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No camarim de um show de rap

Neguinho – E aí M.B. firmão?


M.B.
– Firmeza Neguinho, seis sobem no palco antes de nós, né?

Neguinho – Pode crê. Aí, fiquei sabendo que foi chamado pra fazer um show com uns gringo e ia rolá cachê gordo e os carái e mesmo assim sê deixou quieto.

M.B. – Foi essas mesmo.

Neguinho – Cê fez certo. Tão dizendo que cê é o cara porque teve nego que abraçou com as dez e aceitou a parada.

M.B. – Aí, tem problema de nós ganhar dinheiro cantando rap?

Neguinho – Problema nenhum Jão, nem fui eu que falei…

M.B. – Mas quem falou foi chamado pra fita?

Neguinho – Nem foi.

M.B. – Tem nego que nem mato que começou no rap ontem e joga pedra nos grupos que aceitaram a proposta. Mas aí, se ligassem pro barraco deles e falassem o valor do cachê que falaram pra mim, iam pirar com todos aqueles zeros.

Neguinho – Pode crê, esses conversinha têm é inveja.

M.B. -Não é bem assim, meu irmão. Liga aquele grupo da leste que está ali?

Neguinho – Sei.

M.B. – Tem muitos igual a eles. Disposição que dá um trampo de segunda a sexta pra levar um qualquer pro barraco, canta de graça nos shows, engole uma par de sapo e ainda representa. Tá entendendo? Tiram do bolso pra pagar o trem de lá da leste até aqui, imagina se bancassem os moleques…?

Neguinho – Mas quem vão fazer o show tá de vida ganha e um cantava rock até esses dias…

M.B. – Não sou eu que vai julgar ninguém. Eu sei é de mim e já falei pro cê não entrar nessas não. Tem mal nenhum favelado ganhar dinheiro. Esse dinheiro volta pra favela tá ligado?

Neguinho – Voltá pra favela? Esses caras não vão pegar o dinheiro do cachê e asfaltá as ruas da favela…

M.B. – Não é função de rapper asfaltá a favela, nem comprá telha pros barracos, nem nada. Quem canta rap tem que cantá rap. Cantá rap e denunciá, informá, divertir. Se o cara é da favela de verdade, a grana volta pra favela, volta pro rap e se pá ele até cobrá daqueles que ganham pra asfaltá, quem ganha pra canalizá o córrego. Entendeu?

Neguinho – Mas eu li um barato que diz que o hip-hop se vendeu, que os boy tão tudo curtindo…

M.B. – Tem uns mano que se venderam sim. Tem uns mano que trocam de ideologia igual trocam de roupa. O tipo que mais vende é o dele. Hoje tá vendendo sangue, ele canta sangue. Esses são os piores que não só se vende, mas vende o mesmo sangue que os avô deles derramaram pra se libertá.

O MC ND que estava próximo e ouvia a conversa se intromete:

ND – Vem tirando não Jão, eu canto é a realidade, morô? Eu canto a violência porque eu vivo a violência. Se cêis são covarde e não mostram a real é problema seus.

M.B. retruca: – Não mostrar a real? A real que se mostra já mostravam o finado Noticias Populares, o mala do Datena e o Gil Gomes todo dia. Mostrar nossos irmãos caídos com buraco de bala na testa é futuro pra quem?

ND – Tá de tiração trutão? Fica ligeiro que a batata assa pro seu lado…

O segurança do evento vendo o tempo fechando pede para ND acompanhá-lo. ND vai na boa até agradecendo porque de mal ele tem só a cara e as letras. Mais tarde anunciaram o cancelamento da apresentação de ND. O público pouco se importou. Estavam ali para ver a apresentação do grupo de MB, principal atração da noite.

M.B. – Tá vendo, estamos divididos, brigando entre a gente. O cara ganha dinheiro da favela falando de irmão que mata irmão. Isso não é consciência. Agora é que precisamos saber o que queremos, pra onde queremos ir, se não vai ser isso: grupos se dividindo, uns pipocando de um lado pro outro, os cara vão ganhar a fita e vão ver que é mamão. Vão jogar mais grana pra ver a gente se matá.

O radialista e produtor, como gosta de ser chamado o A. M., que promoveu este show na periferia entrou no camarim para verificar se estava tudo bem.

Viu no olho do M.B. a faísca de quem tem determinação e sabe o que quer. Sentiu o cheiro de liberdade no ar (não era cheiro de maconha – desde quando maconha é liberdade? – era visível um clima de liberdade mesmo).

O tal radialista e produtor sentiu o que se passava, do que estavam conversando. Pediu desculpas pelos inconvenientes causados pelo ND e saiu com a desculpa de que ia resolver algo.

A.M. – Aí rapa fica avontis que tô no corre loco, liga?

Na verdade dava graças a Deus por ter saído dali, tinha a sorte de ter um programa de rap numa rádio. Isso o fazia menos visado. Assim pensava que a rapaziada o considerava do movimento. Mas seu compromisso com o rap é nulo, seu interesse não é pelos pretos, mas pelas verdes, e nessa noite várias dessas iriam para seu bolso. Se sente seguro por não poder fazer show nas grandes casas, ouviu a distorção e a microfonia do som do grupo que se apresentava e pensou com ele mesmo que podia ter alugado um som mais firmeza. Sorriu, e pensou novamente; “Que bom! Assim a parada fica com cara de hip-hop mesmo.”

Enquanto isso no camarim a conversa continuava e mais gente se juntava ao lado do M.B. para ouvi-lo:
MB – Mas é o seguinte.

Se testa ouro no fogo, o rap tá sendo testado no fogo. Tem maluco gritando que o fogo tá ardendo. Tem maluco que grita que o dinheiro tá entrando, mas tá se lamentando porque não está indo pro bolso dele. Tão tudo dizendo: “O rap tá se vendendo!” mas usam medalhão escrito “Anuncie Aqui”, andam com boné escrito “Anuncie Aqui”, com blusa escrito “Anuncie Aqui”. E se pudessem andariam que nem piloto de fórmula1 com um macacão cheio de marca de patrocinador.

Hoje o rap tá sendo testado com dinheiro, tem nego pipocando pra todo lado, dizendo que o bagulho vai acabar. No passado já fomos testados com borrachada da polícia. Os home batiam pra valer, pra ver quem fica e quem corre e nem por isso a parada caiu.

Foto meramente ilustrativa*
Neguinho – E as grandes gravadoras M.B.? E a mídia? Qualé desses que passaram a ter interesse no hip-hop do nada?

M.B. – Esses são tudo cobra, não conseguem entender de jeito nenhum por que a gente não aceita qualquer parada com eles. Um desses executivos chegou a perguntar se eu sabia quanto era que estavam me oferecendo e eu respondi: "Sei sim, e você sabe o que é “NÃO”?". Esses caras são caoio, só enxergam o dinheiro, eles querem fazer com nós o que fizeram com o axé, o que fizeram com o samba, o sertanejo — mascá até acabá o gosto e guspir o bagaço longe. Só que eles não sabem que aqui tem os loco conscientes e quando esses doidos derem por si vão perceber que criaram os próprios coveiros.

Mas aí, enquanto isso a Luciana Melo tá lá ganhando com uns cara fazendo uns passo de break. Agora tá mamão, é curtição. Todo mundo é do hip-hop, todo mundo é preto, todo mundo é favelado. Na hora que o rio começar a transbordar os rato vão sair vazados. E no dia seguinte quem vai ficar pra limpar a lama são só os dono do barraco mesmo. O resto é conversa.

Chega a hora do show do grupo do M.B., depois da primeira música ele diz:

M.B. – Aí, vou dar uma idéia quente. Tô vendo daqui de cima o topo da cabeça de cada um. Tudo o que consigo ver daqui foi feito por nós mesmo. Os bonés que cês tão usando, as tocas, as tranças, esse microfone que eu tô segurando, os auto-falantes que tão pipocando, o busão que cês pegaram pra chegar aqui no show, o tênis dos que vieram na caminhada.

Tudo isso feito pelos maloqueiro, por pai de família, pelos favelado. Mas o dinheiro foi pro bolso de quem? De quem não fez porra nenhuma, tá ligado?

É tudo nosso. Boy é boy porque favelado é favelado. Entendeu?

Não posso ser contra quem aceita fazer show pros boy. Os boy nunca discriminaram nosso dinheiro, ficaram ricos escravizando os pretos e continuam ricos marginalizando os pobres. Temos é que bolá um plano, pra tomar tudo de volta. É tudo nosso.


* O rapper fotografado não se vendeu, ofereceu sua imagem para ilustrar a matéria.

**Os nomes aqui utilizados são fictícios; o drama que enfrenta o rap é real.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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